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Entender o que uma outra pessoa pensa é difícil, certo? Imagine tentar compreender o que se passa dentro de uma semente de árvore. Pois esse é um dos exercícios clássicos para quem está começando a fazer aulas de teatro. O sujeito chega para o curso e recebe a seguinte e instrução: "Seja uma sementinha, brote lentamente, pense que você vai desenvolver seu tronco, depois os galhos, etc". Os professores dizem que isso serve para testar a concentração, elaborar os movimentos do corpo e coisas do gênero. Mesmo que não servisse para mais nada, seria um jeito de separar quem leva jeito para o ofício e quem não leva. Os que acharem que fazer isso em público é muita pagação de mico, não têm muita chance no teatro. Afinal, muita coisa mais estranha do que a sementinha espera o futuro candidato a ator em sua carreira. Isso pelo menos é o que dizem os atores e diretores com experiência na área.

Quem chegasse a uma apresentação do grupo Pé no Palco uma hora antes de uma peça começar, por exemplo – infelizmente, a visitação não é aberta nesse momento –, poderia ter pensamentos estranhos sobre os rituais de preparação envolvidos. "Uma das coisas que fazemos perto da hora de começarmos a apresentação é aquecer o teatro", diz a diretora Fátima Ortiz.

Além de aquecimento vocal, aquecimento corporal e um certo aquecimento emocional – um dos mais misteriosos ritos dos palcos –, ainda é preciso aquecer o teatro? É o que garantem os artistas. "Alguém diz: ‘Vamos liberar a platéia!’. E nós vamos até as poltronas, vistoriamos tudo, aquecemos o local", conta Fátima. Depois, é a vez de liberar o palco e assim por diante.

Esse não é o único rito do Pé no Palco, um misto de grupo teatral e escola de interpretação fundado por Fátima, uma atriz e diretora premiada, com anos de estrada – e de tablado. "Temos vários rituais. O principal deles é a roda que fazemos antes e depois de toda atividade que temos em conjunto", comenta. Fazer a roda não é tudo. O importante, depois que todos estão em círculo, é executar o que Fátima chama de "ligar a terra ao céu". Funciona mais ou menos assim, segundo o relato da própria diretora: "Primeiro todos relaxam, abaixados, depois levantamos juntos e erguemos os braços esticados". Por fim, todos comemoram, batendo com as mãos no chão ou no próprio corpo. O ritual está prescrito para depois de peças, ensaios e até reuniões. "A não ser as mais burocráticas", conta Fátima.

É preciso levar esse tipo de atividade a sério, dizem os entendidos. "Não dá para achar que isso é esquisito, que é mico", diz a atriz Gisa Gutervil, do grupo Os Satyros. Premiada com o Troféu Gralha Azul no ano passado, ela garante que nunca fez uma sementinha na vida. Mas tem de passar por uma série de outros rituais típicos da profissão. Isso inclui desde o aquecimento emocional até uma recitação hipnótica de versos antes de entrar em cena.

Mas, afinal, o que é o tal "aquecimento emocional"? "É um jeito de você se aproximar do personagem", ensina Gisa. No caso de sua última personagem, uma moça que estava no fim de um relacionamento amoroso – na peça Quando Você Disse Que Me Amava –, ela tinha de lembrar de antigos relacionamentos para entrar no clima. Para isso, ficava no palco antes de o público chegar, e ouvia um disco que fazia lembrar um antigo namorado. Além disso, repetia trechos do texto e ficava olhando para seu figurino. Como a peça era mais intimista, o grupo decidiu pular dessa vez um ritual clássico. Os Satyros costumam, antes de entrar em cena, repetir à exaustão um poeminha curto, que começa sendo dito baixinho e termina quase gritado. Quem está do lado de fora do teatro esperando para entrar ouve muito e entende pouco. Mas a companhia garante que funciona. Todos ficam ligados na representação a partir dali.

Bambu

Repetir coisas à exaustão é um dos métdos preferidos de alguns diretores para colocar seus atores em forma. Um encenador curitibano, por exemplo, costumava fazer todo mundo pular antes do ensaio. Por duas horas seguidas. Cansados, ele acreditava, os atores fariam seus papéis melhor. O ator Luís Mello costuma usar uma técnica um pouco diferente nas oficinas que ministra. Ele coloca os alunos para brincar com um objeto por várias horas seguidas. Um exemplo pode ser um bambu.

Durante três horas, os atores têm de pensar em exercícios para fazer com o bambu. Além da criatividade, isso causaria uma espécie de cansaço produtivo neles.

Nena Inoue, sócia de Luís Mello no Ateliê de Criação Teatral, o ACT, dá aulas há vários anos. Ela não é adepta da técnica da sementinha. "Para mim, a sementinha não brota", brinca. Mas ela admite que tem seus rituais antes de entrar em cena. Coisas como verificar se tudo está em ordem, revisar figurino, etc. "Nada como acontece com alguns colegas", conta. Como exemplo, Nena cita uma atriz que trabalhava com ela em uma peça. "Um dia, joguei fora uma caixinha cheia de lixo que encontrei. Depois, vi que ela estava procurando alguma coisa por ali. Era a caixinha", diverte-se a atriz. A colega precisava sempre juntar um pouco de lixo, catar uns copos de plástico, limpar o palco antes de começar a peça. "Acho que ela dava até uma varridinha, mas a gente nunca tinha esquecido", conta Nena. Naquele dia, mesmo sem juntar o lixo, a atriz fez bem o seu papel. Mas ficou sem o seu ritual.

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