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A árvore é de plástico e os enfeites feitos na China. O pai disse pra não comprar. Falou que era por causa da exploração do trabalho infantil e mais uma porção de outras coisas que a mãe nem ouviu. Se ouvisse também não ia entender muito. Comprou.

– E há tempo nessas horas pra saber de onde as coisas vêm? Ora, faça-me o favor, Carlos! Estamos no Natal!

Quase brigaram. A Mariana, minha irmã, que me contou. Reparei que ultimamente eles estão nervosos. O Gabriel, meu colega de quarto, disse que é normal, que no fim do ano todo mundo fica assim, meio estressado.

Mas eu sei que não é isso. É que esse é o segundo Natal que eu passo aqui. Só que eu não me importo. Mesmo. Eles é que ficam perdidos, andando de um lado pro outro, sem saber o que fazer, com pena. Ontem, nem bem chegaram e já desandaram a falar. Só coisa triste. Acho que é pra eu não ter tanta vontade de sair do hospital. Contaram da úlcera da vó Eduarda, dos esquecimentos do tio Onofre, da pintura "horrível!" da casa da vizinha da frente, do mau jeito que o Guilherme deu no pescoço – "não consegue nem respirar, imagina! Tá num mau humor só!", das notas baixas da Mariana, "que passou por conselho de classe, acredita?". Trouxeram umas comidas gostosas que eu posso comer (chocolate, por exemplo, eu não posso), me deram vários presentes. Não me deixaram falar muito. Quando vi, foi-se o tempo da visita.

Um pouco até que dá pra entender. Eles queriam que eu fosse pra casa e que tudo voltasse a ser como antes. Queriam um Natal perfeito como aqueles das propagandas de panetone. Eu também queria, mas não é assim. Todo mundo sabe que não é. Às vezes tento dizer que está tudo bem. Mas não acreditam. Pior, acreditar até que acreditam, mas não gostam – parece que se sentiriam melhor se eu estivesse triste como eles. Isso é muito estranho. E como choram! Me olham como se eu já estivesse morto. Não estou. E é ótimo estar vivo, mesmo sem sair da cama. Já disse pra eles que quando falarem de mim pra família é pra dizer isso. Não sei se dizem.

Tenho 13 anos. Não sei de muita coisa. Sei que estou doente e que o médico disse que é grave. Todos os meus amigos por aqui estão mais ou menos na mesma situação e, sinceramente, não é tão ruim! Claro que é chato fazer exame, tomar remédio, sentir dor, enjoo... mas a gente se diverte! Os quartos são legais, bonitos até. As enfermeiras também! Principal­­mente a Tati! E às vezes vem uns palhaços aí que são ótimos! Fiquei sabendo que tem criança que fica em quartos bem piores quando estão doentes, outras acabam morrendo porque não tem atendimento, e outras não podem nunca brincar, como o pai falou, "são exploradas". Aqui tem até livro. O Gabriel leu alguns pra mim. O último foi Oscar e a senhora rosa, de um cara chamado Eric alguma coisa Sch­mitt, acho que é isso. Me identifiquei muito. Recomendo.

Como não posso sair andando por aí, jogar bola, essas coisas, fico aqui observando. O que eu mais faço ultimamente é observar. Tem um João de Barro que mora ali, ó, em cima daquele poste. Desenhei ele e dei de presente pro pai. Ficou bacana. Fazia tempo que ele não sorria de verdade.

E hoje aconteceu uma coisa que me deixou bem feliz. Uma coisa que, se for pensar direito, é até meio besta. A Josiane, enfermeira da manhã, abriu a janela e o sol chegou no meu pé. Aí eu me virei todo – coloquei a cabeça no pé da cama, e os pés na cabeceira. Fazia tempo que não saía sol. Até a arvorezinha que a mãe colocou perto da janela ficou bonita, com uns reflexos nos enfeites. Pareciam de vidro, iguais aqueles que a vó Sabina pendurava, quando era viva, no pinheirinho da chácara. Foi bem legal. Fiquei ali um tempão, me esquentando. Parecia um deus, criando mundos, lembrando da vó, dos primos, dos abraços de todo mundo, fazendo planos...

A vó Sabina era bastante religiosa. Tinha uma frase de Jesus Cristo que ela sempre repetia: Sois deuses! Acho que quando eles chegarem, vou falar disso pra eles. Opa, a Tati está chegando aí com meu lanchinho da tarde! Olha! Tem até panetone!

– Feliz Natal!

Lindsey Rocha é escritora, artista plástica e atriz. É autora de Nervura do Silêncio (Editora 7 letras).

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