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O ser humano, antes de mais nada, é um estrangeiro. Seja quem for, esteja onde estiver. Podemos disfarçar essa condição por meio de roupas, máscaras, profissões, sorrisos e entorpecimentos. Ser diferente é a regra, todos os grandes autores já disseram isso, e entre as mais belas definições dessa tese vale citar a de Carlos Drummond de Andrade, de 1930, a abertura do "Poema de Sete Faces": "Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida". Todos somos gauche, tortos.

É possível ler, entender e apre­­ender Aqueronte, o Rio dos Infortúnios, de Claudia Belfort, co­­mo uma obra sobre o ser e es­­tar gauche na vida.

Claudia problematiza os que são e não podem deixar de ser gauche na vida. Afinal, nem sempre há luz no fim do túnel, nem sempre a porte abre, nem sempre há bonança depois da tempestade. Para alguns, ou melhor, para muitos, viver é uma sinfonia desafinada e sem retorno.

Os personagens da ficção de Claudia Belfort são os loucos da realidade, os feios, sujos e malvados. Maria Clara, a protagonista do primeiro conto, está internada em uma clínica-hospício e não vê mais sentido em estar ali. Foge e é por meio de um taxista que reencontra um caminho. Mas esse taxista, condutor do destino, pode ou não ser um anjo. Isso é outra característica desse livro: tudo tem mais de uma camada. Nada é preto ou branco: tudo pode estar no entre, no cinza, que abre espaço para muito.

A ficção de Claudia Belfort é um mergulho no grande abismo que é estar vivo e se enfrentar. O chão ruiu e os personagens dela caminham, apesar do precipício. Todos e tudo estão por um fim, à beira do abismo. São personagens que, em alguma medida, precisam de pílulas para poder seguir: pílulas brancas para não morrer; cor-de-rosa, para desperero; e tom de areia, para acalmar alegrias e alegorias.

Viver, que é muito perigoso, como já disse Guimarães Rosa, é enfrentar a travessia que são os dias, noites, madrugadas acesas para os insones. Viver é arte, guerra, outra coisa. "A vida é nada mais que um câncer que nos come a existência, tira nosso brilho, limita-nos os passos, a visão, amacia a língua e o esfínceter", diz um dos narradores de Aqueronte.

Claudia Belfort, de maneira geral, fez da ficção um meio para pensar impasses que tocam, e muitas vezes afetam, até demais, os humanos nessa contemporaneidade, em que a ficção é um dos únicos antídotos contra o oba-oba da alegria obrigatória, doentia e perigosa. GGGG

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