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Hanif Kureishi: exorcizou em livros alguns dramas pessoais, como a separação da primeira mulher e a morte do pai | Sarah Lee/ Divulgação
Hanif Kureishi: exorcizou em livros alguns dramas pessoais, como a separação da primeira mulher e a morte do pai| Foto: Sarah Lee/ Divulgação

Perfil

Saiba mais sobre o escritor inglês Hanif Kureishi.

- Nasceu em 5 de dezembro de 1954, filho de pai paquistanês e mãe inglesa.

- Ficou conhecido primeiro por ter recebido uma indicação ao Oscar de melhor roteiro original, por Minha Adorável Lavanderia (1987).

- O filme foi dirigido por Stephen Frears e tinha Daniel Day-Lewis no papel de um skinhead que se apaixona por um imigrante paquistanês.

- Sua novela Intimidade foi adaptada ao cinema com o mesmo título pelo cineasta francês Patrice Cheréau.

- Dele, a Companhia das Letras publicou O Álbum Negro, O Buda do Subúrbio, O Corpo, O Dom de Gabriel, Intimidade, No Colo do Pai e, agora, Tenho Algo a Te Dizer.

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"`Você não se sente um idiota por ter ido embora daqui?´

`Às vezes.´

`Então volte. Não ama a minha mãe?´

`Gosto muito dela. Ela cuida bem de você.´

`Isso não é amor.´

`Você também vai passar por isso´, falei. `Casamento, separação, filhos aqui e ali, desintegração da vida familiar. Ninguém se casa aos vinte e cinco e permanece com o mesmo parceiro até os setenta, a não ser que sofra de deficiência de imaginação. Que você tenha muitas esposas, meu filho! Esta é minha praga!´"

O psicanalista Contardo Calligaris, no livro Cartas a um Jovem Terapeuta, lista os traços de caráter que procuraria em alguém disposto a seguir a profissão: "um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas", "uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito" e "uma boa dose de sofrimento psíquico".

Jamal Khan, o narrador psicanalista do novo romance de Hanif Kureishi, Tenho Algo a Te Dizer, preenche todos os requisitos. Todo mundo quer contar a ele seus sonhos e problemas. Essa parece uma situação típica para um psicoterapeuta: com frequência, é tachado de louco, em outros casos, é tratado como se tivesse a obrigação de ouvir as intimidades de quem quer que seja. Uma anedota no livro chega a comparar profissionais do ramo a prostitutas.

Então Khan ouve. Divorciado, mas ainda ligado à ex-mulher, tem um filho adolescente que adora a cultura hip-hop, a ponto de chamar a mãe de "cadela" e o pai de "velho escroto". A mãe fica horrorizada, mas o pai se diverte. Acha que faz parte do amadurecimento – foi uma forma que o garoto encontrou de romper o vínculo materno.

Vivendo a meia-idade, Khan tem uma questão gigantesca com o desejo – de prazer, basicamente, com o sexual em primeiro lugar. Perdido por ter terminado o casamento e sentindo saudades da convivência com o filho, ele tenta compensar o mal-estar com festas de gente famosa (afinal, ele é o psicanalista das celebridades), orgias e drogas.

Em uma mesma noite, ele ingere Viagra, cocaína, ecstasy, anti-depressivo e vodca como se fossem docinhos miúdos e refrigerante. Essas são as partes mais entediantes de Tenho Algo a Te Dizer. Fã de O Mal-estar da Civilização, de Freud, Khan tem uma desenvoltura incrível para lidar com situações bizarras. Ele é levado pela irmã e o amigo para uma orgia em que encontra a ex-mulher fazendo coisas impublicáveis com dois homens. Ele entra na história sem se revelar (os integrantes da orgia usam máscaras e fantasias), tira uma casquinha e vai embora.

À medida que a narrativa avança, Khan revela que uma culpa o atormenta. Talvez seja esse algo que ele tem a dizer. Uma informação que remete à juventude no King’s College, em Londres, quando estava apaixonado por Ajita, uma garota paquistanesa, filha de um industrial rico.

Assim como em outros trabalhos de Kureishi, questões de raça, política e sexualidade aparecem no novo romance, pipocado por referências ao futebol inglês. A diferença, aqui, é que o seu protagonista envelheceu – questão que parece incomodar uma geração inteira de escritores, de Paul Auster a John Updike, de J.M. Coetzee a Philip Roth. Difícil dizer qual deles está envelhecendo pior.

Jamal Khan não é exatamente simpático – como a irmã dele observa, ele age como se fosse superior à maioria das pessoas com que convive, é arrogante e, às vezes, ridículo. Trata-se de um homem com três décadas de análise nas costas e mais de 50 anos de idade que não hesita em ganhar favores sexuais da filha de seu melhor amigo. Ela queria conversar, ele aceita sair de casa debaixo de um temporal e acaba molhando o seu par de Adidas. Então ele acha que a menina deve compensar o inconveniente. Neste ponto, a relação dele com os tênis é muito mais séria que a com o amigo.

Contra as previsões, a convivência de 500 páginas com Khan acaba sendo um bom entretenimento. O que prova o talento de Kureishi como narrador.

Já a relação com o livro acaba na última página sem deixar marcas. Descobre-se que o "algo" não é tão impressionante. Uma situação que deveria causar surpresa é previsível. Sobram as digressões do psicanalista sobre o seu mundo.

Depois de exorcizar a sua separação em Intimidade e a morte do pai, a maior influência da sua vida, em No Colo do Pai, a impressão é que Kureishi não tem muito mais a dizer.

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Serviço

Tenho Algo a Te Dizer, de Hanif Kureishi. Companhia das Letras, 504 págs., R$ 62.

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