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Você acabou de se mudar para uma casa nova. Está escuro. Dos móveis cuja disposição você ainda não sabe de cor você consegue, com dificuldade, distinguir o contorno - apenas o contorno -, mas, por mais que tenha cuidado e atenção, tropeça. E tem medo. Não da queda, mas dessa casa que você ainda não conhece, que ainda não te deixa dormir tranquilo. Durante os 22 minutos do curta de André Novais é essa a sensação: algo entre familiaridade e estranhamento.

O filme começa com um plano pouco iluminado, com um casal que dialoga embaixo de um edredom. Ele, André, fala de como não conseguiu dormir à noite e ela, Élida, fala para ele se sentir à vontade, que poderia ter ligado a TV para cair no sono. O diálogo é corriqueiro; o tom, carinhoso, cauteloso. Mas fluido. A descontração é nervosa, mas permitida na quase ausência de luz, na intimidade do quarto, da cama.

Depois de um tempo, ele se senta, e começamos a identificar o corpo daquela voz masculina. André se levanta e abre as cortinas e esse gesto incomoda, como incomoda mesmo quando acendem a luz numa sala escura - de cinema, por exemplo -, porque a luz invade e, em excesso, ofusca, atrapalha a visão e o entendimento do que se mostra, do que a câmera mostra: queima, literalmente, o filme (no caso de película), "estoura" (em qualquer caso).

André, contra a luz da janela, não passa de uma silhueta negra: víamos melhor no escuro. Élida percebe e pede que ele feche as cortinas para ela (nos) mostrar uma coisa: com as cortinas fechadas, o suficiente de luz entra pela fresta superior da janela e faz do quarto uma câmara escura, aquela mesma do princípio da história da fotografia, do próprio cinema. No teto, é projetada a imagem da rua, da realidade lá fora. Uma imagem invertida.

Saímos do quarto. André está em cores no sofá, agora o vemos com clareza. Élida, entretanto, está longe, de costas, a alguns cômodos de distância. Depois, na cozinha, ela chega, enquadrada lateralmente, e entre ela e nós, parados antes da porta, fica uma parede. Difícil vê-la? Tudo bem, no próximo plano ela fica de frente para nós, e é André que fica de costas.

É ele quem se vira para continuar a conversa com ela, cada vez mais diferente daquela do quarto (as duas, Élida e a conversa. Distantes.) A sequência estabelece visualmente a dificuldade de se aproximar de Élida que ele vai explicitando, aos poucos. Durante o café da manhã, ele pergunta se está tudo bem e ela desconversa. Falam do achocolatado. Durante toda a descida das escadas (filmada na íntegra), quando deixam o apartamento para irem até o ponto do ônibus dele, não trocam nenhuma palavra. Ela faz questão de levá-lo, por mais que ele já conheça o caminho. Vai na frente: o conduz para fora.

No ponto de ônibus, o estranhamento entre os dois atinge o auge e André não aguenta: pergunta para ela se ele está muito em cima, se ela quer que ele caia fora. Ela fala que é assim mesmo, que está tudo bem.

Ela fala das opções de ônibus que ele pode pegar, que passam por ruas de Belo Horizonte que não conhecemos, mas são nomes que não nos são estranhos e sim cotidianos. Ele resolve pegar o próximo ônibus para conversarem mais e ela conta que, depois de algumas experiências, agora vai com calma, não confia muito logo de cara.

Faz isso para se proteger. O ônibus chega e os dois se despedem com um beijo, que começa tímido mas não parece terminar assim. Não dá para saber, a câmera está longe, em primeiro plano estão os veículos passando na rua. Parece que o cineasta nos diz que a intimidade dos corpos, só no quarto. Ela é mais fácil, mais "natural", mas também é mais reservada. Olha... um tabu.

E sim, voltamos para o quarto. Sem eles, fazemos o caminho reverso até o apartamento e, como André, já conhecemos um pouco mais desse lugar. Reconhecemos. Há nostalgia no banco vermelho do ponto. Como a que se tem do lugar que fez parte de uma história, aquela familiaridade que machuca e à qual todos nós, mais cedo ou mais tarde, somos submetidos.

Depois os cômodos, a janela do quarto, o galpão do outro lado da rua (não o vemos, mas sabemos que está lá). Voltamos às vozes. Pelo modo como essa passagem se dá, não podemos dizer se a cena aqui é presente ou passado. Ela se levanta e fecha as cortinas: nada de ofuscamentos, de informação "demais". O cinema depende da luz, mas acontece no escuro.

André conta como a conheceu, como arranjou uma desculpa para conversar com ela, assistente de produção num festival de cinema. André e Élida são namorados na vida real (está na sinopse). Acho que é verdade, pois no fim o personagem/diretor/roteirista afirma que "Rolou.". E, bem... rolou.

*Texto produzido por aluno da Oficina de Crítica Cinematográfica do 2º Olhar de Cinema.

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