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Buster Keaton de costas em cena de Filme, curta-metragem de 1965 escrito por Beckett e 
dirigido por 
Alan Schneider | Divulgação
Buster Keaton de costas em cena de Filme, curta-metragem de 1965 escrito por Beckett e dirigido por Alan Schneider| Foto: Divulgação

Imagine a seguinte ce­­na: Dois homens, numa sala-de-estar. Silêncio. Longo si­­lên­­cio.

Primeiro Homem: Como po­­deria Hume, um idealista, es­­crever uma História?Silêncio. Longo.

Segundo Homem: Uma his­­tória das representações.

Longo Silêncio.

Primeiro Homem: Para mim só há uma alternativa ao es­­colasticismo: o ceticismo.

Silêncio.

Pode parecer uma espécie de imitação do teatro de Beckett, que na verdade foi o Segundo Homem des­­­­sa "conversa" real, com James Joyce. Parece que eles passavam longas horas assim.

Vidas

Em 1927, Beckett chegava a Paris com um emprego de dois anos como professor assistente de inglês na École Normale Supérieure.

Ele logo passou a gravitar para perto da figura de Joyce, ali exilado (palavra e noção que lhe eram muito caras) desde 1920. Beckett tinha interesse em línguas, literatura, e uma inteligência muito, muito acima da média. Seu compatriota, Joyce era meio que um destino óbvio.

E em 1929 Joyce já contempla o garoto de apenas 23 anos com um convite para participar da coletânea de ensaios (Our Exag­mination Round His Factification for Incamination of Work in Progress), que pretendia preparar o caminho para a publicação de seu último romance, Finnegans Wake, cuja conclusão demoraria ainda dez anos. O texto de Beckett para a coletânea ("Dante... Vico... Joyce") demonstra parte das afinidades entre os autores, especialmente o amor pela língua italiana e pelos dois autores. Ou os três?

Joyce chamava Beckett de... Beckett. Um grande índice de amizade para alguém que chamava quase todos seus amigos de Mister Fulano.

Mas eles tinham lá suas diferenças.

Para começar, Beckett foi criado entre protestantes, e Joyce, educado pelos jesuítas, jamais escaparia do peso do catolicismo em sua vida. É preciso não saber nada da Irlanda para imaginar que essa diferença não contasse.

Por outro lado, conta entre as "diferenças" entre os dois a complicada história do "amor" que a filha de Joyce, Lucia, declarou sentir pelo senhor Beckett.

Beckett era uma figura honesta. (Depois de sua morte se descobriu que talvez nem tanto assim. Mas, como lembra Harold Bloom, a literatura não costuma ser o lugar dos santos, com a possível exceção, lembra o autor do Cânone Ocidental, de Tchekhov e... Beckett.) E mesmo sabendo da fragilidade psicológica e até psíquica da menina (Lucia seria mais tarde internada, vítima de crises cada vez mais constantes e violentas de esquizofrenia) teve de lhe informar que não sentia nada por ela, além da estima que merecia como filha de Joyce.

Lucia nunca o perdoou. Foi na verdade aí que começou seu declínio mental.

Nem Joyce, que chegou a banir Beckett por um ano de sua casa.

Mas a relação dos dois era mais forte que isso.

Em 37, por exemplo, quando Beckett estava de volta a Paris depois de obter seu mestrado na Irlanda, ele, voltando para casa, foi apunhalado na rua por um cafetão. A faca roçou seu coração e perfurou-lhe um pulmão. Quando acordou no hospital, viu a seu lado James Joyce, que puxava pelo braço seu médico pessoal, instruído dali em diante a "cuidar do senhor Beckett".

Obras

Mas e a literatura?

Aqui os caminhos são curiosos. Eles se aproximam e divergem quase que ao mesmo tempo.

Se aproximam na medida em que se trata de dois dos homens mais inequívoca e seriamente comprometidos com a busca de novas formas literárias, que lhes permitissem dar conta de coisas que viam como profundamente significativas. Se aproximam também na medida em que os dois apresentaram "diagnósticos" de uma abrangência e uma precisão assombrosas a respeito da situação do homem do século 20.

Mas suas formas, suas abordagens, divergiam. Suas visões de mundo, em grande medida, também.

Joyce, por exemplo, foi o mai­­or estilista da língua inglesa desde Shakespeare. Beckett passou a escrever em francês, segundo suas próprias palavras, para evitar a tentação do estilo.

Numa entrevista, já mais ve­­lho, o próprio Beckett sintetizou perfeitamente a principal diferença entre eles. Joyce era sintético. Eu sou analítico.

É claro que Joyce era tudo me­­nos o que o senso comum chama de sintético. Seus dois últimos romances, juntos, chegam a quase 1.500 páginas. A ideia aqui era o processo de síntese. Joyce trabalha por acréscimo. Jun­tan­do elementos, figuras, referências, técnicas e vozes, acima de tudo vozes. Sua literatura é a literatura do ecumenismo. Do Sim, que encerra o Ulisses.

Beckett, por outro lado, como lembrou algo mordazmente George Steiner, esteve sempre a ponto de encenar uma peça em que um homem amarrado fica silencioso no palco por uma hora. Sua obra é uma permanente busca pelo silêncio. Seus romances tendem ao monólogo, seu teatro, à repetição, ao sem-sentido, à inânia, ao Não.

Ambos tinham uma forte veia cômica, no entanto, e isso diz muito, também, do mundo que viam. Do diagnóstico que elaboravam.

Talvez Beckett tenha meramente vivido mais tempo aquele século, e daí seu "niilismo". Mas Murphy, seu primeiro ro­­mance, Joyce ainda chegou a ler; e deixar de lado, declarando no entanto sua preferência por At Swim-two-birds, de Flann O’Brien, outro irlandês, muito mais próximo da técnica "afirmativa" de Joyce. (O romance de Beckett se abre com a frase, "O sol brilhava, sem ter alternativa, sobre o nada novo".)

Talvez no entanto não seja por acaso que o grande Beckett, aquele que produzirá o teatro e o ro­­mance responsáveis de fato por sua permanência como escritor, tenha surgido apenas depois do fim da carreira e, logo depois, da vida de James Joyce.

Talvez apenas depois de se calar a voz de Joyce o silêncio efetivo de Beckett tenha conseguido se impor no meio do caos de uma guerra cujo absurdo ele entendia como poucos.

Na Paris em que se representou aquela primeira cena restava agora um só irlandês magro, alto, calado e desiludido.

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