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Encarnando Clarice Lispector, a atriz Beth Goulart se expõe no palco, falando de suas dores e do seu processo criativo | Fabian/Divulgação
Encarnando Clarice Lispector, a atriz Beth Goulart se expõe no palco, falando de suas dores e do seu processo criativo| Foto: Fabian/Divulgação

Vida e obra

O impulso, a entrega, o humor

Simplesmente Eu, Clarice Lispector já estava pronto quando Beth Goulart abriu a primeira das 600 páginas da biografia Clarice, escrita pelo americano Benjamin Moser. Descobriu que o recorte que, cada um a seu tempo e lugar, faziam da vida da escritora tinha muito em comum. "Houve uma certa sincronicidade no ar."

Ambos emprestam personagens para retratar a maior escritora brasileira, que foi também a mais pessoal da literatura feita no país.

Joana, a primeira protagonista, de Perto do Coração Selvagem, representa o impulso criativo. Lori, de Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, responde pela entrega amorosa. A dona-de-casa Ana, do conto "Amor", remete à fase em que viveu um casamento. E a personagem sem nome do conto "Perdoando Deus", que vai do deslumbramento de se sentir mãe do criador à ojeriza de se deparar com um rato morto as une, com um toque de humor – presente, embora menos valorizado, na obra de Lispector.

Clarice nasceu na aldeia de Tche­chelnik, na Ucrânia, quando seus pais fugiam da pobreza e da violência local. Muito nova chegou ao Recife, onde cresceu ao lado das duas irmãs e, aos 10 anos, perdeu a mãe, fato que pesou sobre ela irremediavelmente. Casou-se com diplomata, teve dois filhos e, 16 anos depois, se divorciou. (LR)

Para além das maçãs salientes e dos olhos amendoados que lhe conferem uma expressão impositiva e de mistério ao rosto, Beth Goulart se sente parecida com Clarice Lispector também na pessoalidade impressa em cada trabalho seu. Tinha 13 anos quando leu o primeiro livro da escritora: Perto do Coração Selvagem. "E me senti totalmente fisgada", diz. A identificação primeira foi com Joana, e a perplexidade da personagem do romance. Mais tarde, se destinaria à autora. "Clarice me acompanha a vida toda."

A voz que o diz, doce e delicadamente, ecoa as palavras da escritora de Água Viva e A Paixão Segundo G.H. no monólogo Simplesmente Eu, Clarice Lispector (veja o serviço completo). Beth acalentava a possibilidade de se aproximar da mulher de quem guarda em casa uma pequena imagem em ferro (e outra de Fernando Pessoa) há muito tempo. Queria revelar sua face humana, por trás da máscara da autora que tornava Clarice, contra seu desejo, um ser "distante". Acabou por se revelar também a si mesma com a peça. Foi o supervisor de direção Amir Haddad quem lhe apontou: "Você não está percebendo que o espetáculo não é só um depoimento da Clarice. É seu também. Você está tão exposta em cena quanto ela, falando das suas dores e do seu processo criativo".

"O que mais me encanta na Clarice é o impulso criativo selvagem, que eu acho que também tenho", admite a intérprete. "Não me contento só em estar como atriz. Há muito tempo venho fazendo dramaturgia, me embrenhando na direção." Beth se envolveu em todas as camadas de construção do espetáculo. Uniu as pontas da literatura a depoimentos e cartas pessoais em um texto seu, atua (pelo que está indicada ao Prêmio Shell no Rio de Janeiro) e dirige a si mesma – trocando ideias com Haddad, que em nenhum momento se pôs na posição de dar o primeiro olhar à montagem, em vez disso, se limitou a sugerir questionamentos à colega.

É o terceiro solo em que a dramaturgia carrega suas digitais. Antes, fez Pierrot Marie (1991). E Dorotéia Minha (2000), outra vez trabalhando sobre cartas, as trocadas entre sua avó Eleonor Bruno e o amante Nelson Rodrigues. Beth vestia calças pretas que num cruzar de pernas se passavam por saia e era (exteriormente) o que bastava para trocar da personagem masculina à feminina. A transformação se materializava pela expressão corporal e a modulação da voz.

Faz 36 anos – com a mesma pouca idade em que descobriu a escritora de quem atualmente mimetiza o porte e o gestual em cena – que Beth se fez atriz. A filha de Nicette Bruno e Paulo Goulart estreou em uma peça dirigida por Antônio Abujamra, Os Efeitos do Raio Gama nas Margaridas do Campo, ao lado da mãe, da avó e da irmã Bárbara. Ainda com Abujamra, aprendeu a valorizar a técnica, aliada à sensibilidade que é um traço de personalidade rapidamente notável na conversa com a artista. "Ele foi o meu padrinho artístico, que me provocou uma consciência espacial e física", diz.

Essas preocupações não mais a abandonaram em seu ofício. São marcas da atriz o trabalho de corpo elaborado, a fisicalidade presente. Mais o palco quase nu de elementos. Como se viu recentemente também em Quartett, peça de Heiner Müller (1929-1995) inspirada no romance Ligações Perigosas, na qual contracenava com Guilherme Leme.

Suas referências teatrais encontram Peter Brook, Jacques Lecoq (o mestre francês de Denise Stoklos), Pina Bausch. Para fazer Pierrot..., Beth estudou a arte butô, cujo representante máximo é o japonês Kazuo Ono. Somou-os todos à experiência com o gênero musical no espetáculo Cabaré. "Sou estudiosa. Estou sempre fazendo cursos, um workshop interessante, porque a profissão não para." Quem não para é ela. Logo depois de sua passagem por Curitiba, que termina com a apresentação de hoje à noite no Teatro da Reitoria (com ingressos esgotados, Beth estreia no dia 9 de abril Simplesmente Eu... em São Paulo, onde se apresentará nos fins de semana. Ao mesmo tempo, mantém a peça em cartaz no Rio de Janeiro, às terças e quartas.

Conciliar uma rotina dessas exige um compromisso apaixonado, como é o da atriz. "Eu sou casada com o teatro. Sou uma pessoa muito voltada ao trabalho. Quando se tem o sucesso nas mãos, um espetáculo que toca as pessoas, é preciso agradecer aos deuses do teatro. As pessoas aplaudirem com vontade recarrega a minha bateria."

Sem renegar a origem familiar e a influência dos pais atores, Beth encontrou seu próprio público. Ela cita Clarice para se explicar: "vocação é diferente de talento, você pode ser chamado mas não saber como ir". "Talvez eu tenha nascido com esse impulso (artístico), e estar nesse ambiente favorável me impeliu. Mas escolhi o meu próprio caminho. Fui para um teatro mais contestador e de pesquisa, buscando uma linguagem própria, e não a que eles (Nicette e Paulo) utilizavam, que é um teatro mais acadêmico e tradicional. Reverencio as raízes, mas busquei minhas asas."

Gerald Thomas exerceu um papel significativo na sua ânsia por autonomia. Enquanto montavam juntos Elektra com Creta, em 1986, Beth deixou para trás o modelo (inclusive de esposa) aprendido pelo exemplo da mãe, e se lançou atrás de seus próprios impulsos e inquietações. "Foi um trabalho de virada, arrepiei os cabelos, botei minha loucura para fora." Em 1989, Jorge Takla a dirigiu em Cabaré. Com Enrique Diaz ("grande diretor"), fez Tristão e Isolda em 1996. Trabalhou ainda com Celina Sodré, duas vezes, em Barba Azul e Amor Consciente; Mônica Gardenberg, nas cinco horas de imersão em Os Sete Afluentes do Rio Ota; e Vitor Garcia Peralta, em Quartett.

Nessas três décadas e meia de carreira, Beth experimentou o canto: gravou quatro discos entre 1981 e 85. Fez cinema com muito menos frequência do que as novelas que a popularizaram, como Paraíso Tropical, em que interpretava Neli, a mãe em conflito com a personagem de Fernanda Machado.

Para Beth, televisão, cinema e teatro se "interpenetram". "Em Paraíso Tropical, teve muito mais pessoas que ficaram tocadas do que com o teatro", reconhece. Mas é no palco que encontra maior espaço criativo. "No teatro, sou mais livre."

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