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Menina de Ouro, de Clint Eastwood, é um filme sobre boxe, fatalidade da vida – e da morte –, relação entre pai e filha. Menina de Ouro, de F. X. Toole (Geração Editorial, 304 págs., R$ 37), é um livro sobre boxe, preconceitos raciais e, mais uma vez, sobre as desgraças da existência. Mas é, antes, um livro de boxe. De todos os esportes, talvez o mais masculino, talvez a melhor metáfora para a vida (e a literatura).

"Boxear é a magia dos homens em pleno combate, a magia da vontade, da habilidade, da dor, o arriscar tudo de forma que o sujeito possa se respeitar para o resto de sua vida. Até parece com o escrever", uma das muitas descrições que F. X. Toole dá para o esporte que aprendeu a adorar com o pai, um imigrante irlandês vivendo em Nova Iorque que o levava para assistir às lutas no ginásio Madison Square Garden.

O livro de Toole não chamaria tanto a atenção se não tivesse inspirado um filme de sucesso, vencedor de cinco categorias no Oscar deste ano. No Brasil, a Geração Editorial caprichou. Explorando à vontade o sucesso do cinema – a capa exibe o trio de atores da adaptação cinematográfica: Morgan Freeman, Hilary Swank e Clint Eastwood –, o livro reúne seis contos de Toole, traduzidos por celebridades das letras nacionais mais um jornalista. Impressos em letras prateadas, logo abaixo do título, aparecem Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Marçal Aquino, Carlos Heitor Cony, Luiz Fernando Emediato e Sérgio Dávila.

Ao tradutor Wladir Dupont coube a tarefa de verter a introdução ao português. Neste texto, Toole – na verdade, Jerry Boyd (1930 – 2002) – conta que ingressou no boxe quando já tinha mais de 40 anos. Trabalhou como técnico, cut man (o "homem dos cortes", aquele que faz o sangue dos ferimentos do boxeador estancar durante a luta) e chegou a lutar algumas vezes, mas nada sério.

Fã de Ernest Hemingway, autor de O Sol Também Se Levanta, Boyd se interessou por touradas, chegou a viajar para a Espanha e, mais tarde, decidiu escrever. Como não queria confundir o mundo do boxe e o da literatura, criou um pseudônimo a partir do São Francisco Xavier e do ator irlandês Peter O’Toole. Como F. X. Toole, passou 40 anos submetendo seus textos a editoras e ganhando nãos. Até Howard Junke, da revista literária Zyzzyva, pagar US$ 50 (R$ 114) por um de seus contos. Boyd tinha 69 anos.

Ele conseguiu um agente e, um ano depois, lançou a coletânea de contos Rope Burns ("As Cordam Queimam", na tradução de Sérgio Dávila), o único livro que viveu para ver pronto. Depois do filme de Eastwood, que o autor também não conheceu – ele estava mais interessado em desfrutar dos direitos autorais antes de morrer –, a obra foi relançada com o nome de outro conto, Million Dollar Baby (no Brasil: "Menina de Ouro"). Deixou 850 páginas do romance inconcluso Pound for Pound, ainda inédito e cujos direitos de adaptação ao cinema já foram vendidos para Taylor Hackford, diretor de Ray, a cinebiografia de Ray Charles.

O roteiro do filme, escrito por Paul Haggis, é colagem precisa dos seis contos, misturando personagens e fatos que, no livro, não se comunicam, e reforçando a relação mal resolvida entre o técnico Frankie Dunn e sua filha – o que, conseqüentemente, sublinha os sentimentos de Dunn por sua pupila, Maggie Fitzgerald. Ela é a segunda chance que ele esperava, a oportunidade de corrigir os erros que cometeu com a filha.

A narrativa do livro é mais veloz e impiedosa. Como um lutador deve ser. O escritor argentino Julio Cortázar dizia que, na literatura, o romance vence o leitor por pontos, enquanto o conto ganha por nocaute. A forma escolhida por Boyd para contar suas histórias não poderia ser outra senão o conto.

Em entrevista ao Caderno G, Carlos Heitor Cony, tradutor do conto "O Jogo e a Luta – Lutando em Philly", comparou Boyd a Hemingway e William Faulkner (autor de O Som e a Fúria). "A linguagem dele me fascinou. É um livro muito bem escrito, mas com uma carga, para mim, altamente repugnante", disse Cony. Boyd não poupa meios de acertar o leitor com diretos fulminantes – o equivalente em golpes de suas descrições de ferimentos, odores e sensações.

Boyd, assim como seus alter egos nas histórias, era branco. Um irlandês vivendo em meio a negros nas vizinhanças pobres de Los Angeles. Ele experimentou o racismo de várias formas, dentro e fora do boxe. O conto "As Cordas Queimam", o mais longo do livro com quase cem páginas, se passa em 1992, ano em que os policiais brancos que espancaram o negro Rodney King foram absolvidos das acusações. A divulgação do veredito transformou Los Angeles em um front, mais de 30 pessoas morreram e centenas ficaram feridas. No conto, Puddin é um jovem negro e lutador promissor – um contender –, treinado pelo ex-policial branco Mac. De novo, a relação paterna entre treinador e pupilo embala a história, que termina com sangue e muitas mortes.

Para Boyd/Toole, você pode ser talentoso, trabalhar duro e, ainda assim, o fracasso é muito mais provável que o sucesso. Juízes corruptos não são exclusividade do futebol brasileiro. Jogar sujo não é mérito só de políticos. Na vida e no boxe, dinheiro é a regra que a maioria conhece e respeita. Para ser bom, não basta ser forte (tough ain’t enough). Inteligência e um bocado de fé são essenciais e igualmente falíveis.

Jabes

* Menina de Ouro, de F. X. Toole, tem seis contos mais uma introdução, traduzidos por Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Marçal Aquino, Carlos Heitor Cony, Luiz Fernando Emediato, Wladir Dupont e Sérgio Dávila.

* F. X. Toole é pseudônimo de Jerry Boyd (1930 – 2002), treinador que teve textos recusados por editoras por 40 anos. Publicou seu primeiro conto em 1999, aos 69 anos. Três anos depois, vendeu os direitos para Eastwood.

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