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Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar | Roberto Custódio/JL
Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar| Foto: Roberto Custódio/JL

"Feitiço da Vila"

Quem nasce lá na VilaNem sequer vacilaAo abraçar o sambaQue faz dançar os galhos,Do arvoredo e faz a lua,Nascer mais cedo.

Lá, em Vila Isabel,Quem é bacharelNão tem medo de bamba.São Paulo dá café,Minas dá leite,E a Vila Isabel dá samba.

A vila tem um feitiço sem farofaSem vela e sem vintémQue nos faz bemTendo nome de princesaTransformou o sambaNum feitiço descenteQue prende a genteO sol da Vila é tristeSamba não assistePorque a gente implora:"Sol, pelo amor de Deus,não vem agoraque as morenasvão logo embora

Eu sei tudo o que façosei por onde passopaixao nao me aniquilaMas, tenho que dizer,modéstia à parte,meus senhores,Eu sou da Vila!

Não é possível falar de samba carioca, ou nele pensar, sem dedicar um capítulo inteiro a Noel de Medeiros Rosa, morto em 1937, aos 26 anos, em decorrência de uma tuberculose, a qual insistiu em não tratar, optando pela boemia intensiva. Um dos maiores e mais importantes artistas da história da Música Popular Brasileira, Noel foi também responsável pela união das sonoridades do morro com às do asfalto, o que mudaria para sempre não apenas o samba, mas os rumos da produção musical no país.

Nascido de um parto difícil, Noel sofreu, pelo uso inadequado do fórceps durante o procedimento médico, um afundamento da mandíbula. O ferimento lhe deixou praticamente sem queixo, seqüela que o marcaria por toda a vida, afetando-lhe tanto a auto-estima quanto a percepção que tinha de si mesmo.

Criado no bairro carioca de Vila Isabel, filho do comerciante Manuel Garcia de Medeiros Rosa e da professora Martha de Medeiros Rosa, Noel era de família de classe média, tendo estudado no tradicional Colégio São Bento, no Centro do Rio, de 1913 a 1918. Ainda na adolescência, Noel aprendeu a tocar bandolim de ouvido e apaixonou-se pela música, o que lhe ajudou muito a conquistar uma certa auto-confiança, prejudicada pela deformidade facial, que o impedia, inclusive, de ingerir alguns alimentos em público. Logo, passou ao violão e cedo tornou-se figura conhecida da boemia carioca.

Embora tenha entrado para a Faculdade de Medicina, estudar nunca foi o forte de Noel, apesar de sua inteligência viva e inquieta. Preferia a música e as noitadas regadas à cerveja, ao cigarro e a muita conversa fiada. Foi integrante de vários grupos musicais, entre eles o Bando dos Tangarás, ao lado de João de Barro (o Braguinha), Almirante, Alvinho e Henrique Brito, todos nomes importantes da música nacional.

O cineasta Ricardo van Steen, diretor do longa-metragem Noel Rosa – Poeta da Vila, que estreou ontem em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, disse, em entrevista ao Caderno G, que a música produzida pelos Tangarás se aproximava mais das sonoridades interioranas, de levada mais sertaneja, e não proporcionavam ao compositor o frisson criativo que ele tanto buscava. Foi apenas quando Noel ultrapassou a fronteira do mundo mais bem comportado da classe média e mergulhou de cabeça nos cabarés, botequins e casas de meretrício na região carioca do Mangue, que Noel finalmente se encontrou – pelo menos enquanto artista.

Em 1929, Noel arriscou as suas primeiras composições, "Minha Viola" e "Toada do Céu", ambas gravadas por ele mesmo. O sucesso, no entanto, só chegou de fato e de direito com o lançamento do clássico "Com Que Roupa?", um samba bem-humorado que sobreviveu décadas e até hoje é gravado. Nesse momento, o poeta da Vila, como ficou conhecido, revela sua faceta mais genial e influente – a de cronista do cotidiano

O escritor Jorge Caldeira, autor da biografia Noel Rosa – De Costas para o Mar, disse ao Caderno G que o poeta e sambista da Vila Isabel teve na sua época um papel semelhante ao que os rappers hoje desempenham. Explicando: suas letras contavam pequenas histórias do cotidiano, descreviam uma cidade em vias de modernização, sempre com humor e pela veia crítica.

Caldeira afirma ainda que Noel também teve papel fundamental no processo de consolidação da indústria fonográfica (e cultural) no Brasil, nas primeiras décadas do século passado. Grandes gênios do samba, como Pixinhguinha, Sinhô, Donga e João da Baiana fizeram uma revolução ao redimensionar a música feita na época, dando-lhe o formato de canções, que puderam ser registradas em disco, e assim "transportadas" pela tecnologia a outros lugares, onde os músicos não pudessem estar.

Para o biógrafo, Noel teria se encantado com essa possibilidade e, como profundo admirador dos compositores acima citados, apefeiçoado essa forma de fazer e vender o samba ao público. Vale lembrar que isso teria acontecido antes no Brasil do que nos Estados Unidos, com os compositores e cantores de jazz.

Caldeira discorda, contudo, dos que afirmam que Noel tenha sido uma espécie de ponte entre o samba do morro e do asfalto. Para ele, sociólogo de formação, essa análise, embora recorrente, tem um viés de "sociologismo", que busca explicar tudo partindo do ponto de vista das diferenças sociais ou raciais. Para ele, esses dois mundos estanques – o do samba da favela, dos negros, e o da classe média, dos bairros mais abastados – não estariam tão separados assim.

Rivalidade

Noel Rosa, um boêmio inveterado, foi protagonista de um curioso duelo travado por meio de canções com seu rival Wilson Batista. Esse confronto é mostrado no filme de Ricardo van Steen.

Os dois compositores atacaram-se mutuamente em composições ao mesmo tempo agressivas e bem-humoradas, que renderam alguns clássicos da música brasileira. Entre eles, estão sucessos de Noel como "Feitiço da Vila" e "Palpite Infeliz".

Apesar de ter vivido pouco, Noel e sua música conquistaram admiradores fervorosos. Entre os intérpretes que passaram a cantar e gravar seus sambas, destacam-se Mário Reis, Francisco Alves e Aracy de Almeida.

Casanova da Vila

Para van Steen, um dos aspectos mais importantes para a compreensão plena da personalidade de Noel foi sua atribulada relação com o sexo oposto. Don Juan improvável, ele teve muitas mulheres e com elas manteve relacionamentos de paixão e ódio. "Noel não podia viver sem elas, mas suas canções provam que não se tratavam de convivências sempre pacíficas. Muitas dessas composições as atacam abertamente", afirma o diretor.

O compositor teve algumas namoradas ao mesmo tempo. Casou-se em 1934 com Lindaura, mas era apaixonado mesmo por Ceci, a dama do cabaré, que no filme de Van Steen é vivida por uma exuberante Camila Pitanga.

A rotina de samba, bebida, cigarro, pouco sono e muitas mulheres teve seu preço. Noel contraiu muito cedo uma tuberculose a qual tentou em vão enfrentar, afastando-se da boemia e mudando-se para Belo Horizonte. Mas, mesmo lá, não resistiu à tentação e caiu na vida. De volta ao Rio, jurou estar curado. Lego engano. Morreu em sua casa no bairro de Vila Isabel no ano de 1937, aos 26 anos. Deixou mais de 250 músicas. Pelo menos um terço delas são clássicos.

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