• Carregando...
 | Divulgação
| Foto: Divulgação

Esta semana termina a novela Em família, debaixo de críticas, agravadas pela audiência digna de Sessão da Tarde. Choremos. Nas devidas proporções, o folhetim derradeiro de Manoel Carlos corre o risco de ser embalado no mesmo pacote da Seleção Brasileira, sendo tomado por um retrato do nosso fracasso. Nem em novelas seríamos mais tão bons assim. Que venha o dilúvio.

>> Leia também a opinião do blogueiro Willian Bressan

Sabe-se que não é verdade – a audiência de Avenida Brasil, na Argentina, hasteou, em território inimigo, a bandeira de nossas altíssimas qualidades novelísticas, oi-oi-oi. Podem torcer o nariz os que acham que exportar dramalhões só atesta nossa mediocridade cultural: o entretenimento é a terceira maior indústria do mundo. Beijinho no ombro para vocês.

Deve-se admitir as perebas de Em família, é claro. Nosso público, que já assistiu a Vale tudo, Roda de fogo, Bebê a bordo e tantas outras joias da teledramaturgia, é exigente e não deixou passar. Importa consolidar aqui pelo menos dois escorregões que os analistas destacaram ao longo da exibição: a pouca diferença de idade entre os atores não foi compensada pelas boas atuações, como se apostava. O povo não engoliu Natália do Vale no papel de mãe da Júlia Lemmertz. Virou ruído.

Mais uma: Bruna Marquezine não conseguiu imprimir densidade dramática à filha que se apaixona pelo carrasco do pai e desilusão da mãe, caso típico de eterno retorno. É engraçadinha, mas ordinária. Faltou-lhe tino, ou direção, para encarnar uma representante da geração presentificada, impermeável até ao saber que um ônibus escolar caiu do penhasco. Luiza é da turma do "dá nada", educada na solidão dos smarts, portanto "nem aí" para o que os gregos chamariam de "tragédia". Resta saber se contaram para ela.

Em trocados, a má sorte de Em família diz algo sobre a direção, sobre o cansaço de Manoel Carlos – e seus inverossímeis cafés da manhã servidos por empregadas sem direitos trabalhistas –, mas diz também sobre o público. Nós pioramos. Aplaudimos de pé às bipolaridades e às incoerências de Amor à vida – com todo respeito, uma trama torturada, adolescente – e vaiamos sem dó a trama adulta que agora se prepara para sair de cena. Chamamos a psicóloga ou discutimos a relação?

Em família é novela de gente grande – o que redunda num caso típico em que a qualidade se converte em problema. Os personagens têm densidade e cada um foi construído com bisturi. Repare. A cicatriz de Virgílio, o antiquário de Helena, o autoexílio da violentada Neidinha numa casa de repouso, a insatisfação de Juliana com um casamento descolado e sem filhos. Sem falar em Clara e sua homossexualidade tardia – bota tabu nisso. São pistas. Não há uma figura na história sobre a qual não se possa estabelecer as relações de causa e efeito. A roupa, a moradia, a profissão, as falas, tudo, como se diz no senso comum, "tem a ver". O que Manoel Carlos escreve faz sentido. Resta entender por que isso nos aborrece tanto. Está aberta a temporada hipóteses.

Em família não é uma novela povoada pelas personas frágeis das redes sociais – às quais o mirabolante vilão Félix se ajustava muito mais, por exemplo, do que o contido Nando, um marco na pele de um superlativo Leonardo Medeiros. Serve de estudo de caso para todo o resto: ele é chatinho, encruado, exclusivista, impôs-se à mulher doida varrida, tem uma rusga na folha corrida. É humano. De tão comum, podemos vê-lo no espelho do nosso banheiro. Tudo nele "confere", de modo a que o telespectador possa presumir ali a costura da vida – um exercício que todo mundo tem de fazer um dia, nem que seja na hora final. Se uma novela consegue propor esse papo sofisticado, tanto melhor. Só que é desconfortável.

O núcleo central de Em família não foge à lógica "precisamos falar sobre Kevin". O que o autor propõe está à altura de um ensaio – como aqueles que a antropóloga Mirian Goldenberg escreve sobre amantes e quetais, uma mestra. As ligações de parentesco, afinal, são para maiores. Exige nervos de aço. O prazer da intimidade entre os seus pode se converter, em instantes, num telecatch.

Entre paredes se preserva o passado, entre paredes o passado escraviza. Relicário e prisão. No sofá, descalços, vemos que nos repetimos, que somos continuidade de algo nem sempre bonito. Junto dos nossos temos presas, olhos fechados, fazemos cara de Bolacha Maria.

Família é afeto, mas também carne viva. As pesquisas mostram que pouco mais de metade dos brasileiros não vive mais em clãs tradicionais. Assunto antes arroz com feijão, comédia de costumes, como no seriado A grande família, virou coqueluche filosófica. Alain Badiou, Luc Ferry, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky – raro um pensador contemporâneo que não tenha se arvorado em fazer o mesmo exercício de Manoel Carlos. Família? Boa pergunta. O que dizem os bambas é uma sucessão de tentativa e erro. Há muito a dizer – mas a fala não está pronta. E não deu tempo de esperá-la dessa vez. A instantaneidade do público atirou Em família pela janela do trem. "Não curti" é a mensagem.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]