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De Olhos Bem Fechados: Stanley Kubrick conseguiu recriar parte da atmosfera onírica de Schnitzler | Divulgação
De Olhos Bem Fechados: Stanley Kubrick conseguiu recriar parte da atmosfera onírica de Schnitzler| Foto: Divulgação
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Traumnovelle, romance do escritor austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), foi publicado originalmente em Viena, em 1925. No Brasil, traduzido Breve Romance de Sonho, saiu somente em 2000, na esteira da famosa adaptação de Stanley Kubrick para o cinema e, recentemente, em dezembro de 2008, relançado pela Companhia das Letras, em formato de bolso.

A reedição recente não foi tão aguardada como a primeira. Havia, na época, a expectativa gerada pelo inexplicável atraso na publicação de quase toda a obra do autor no Brasil. Também havia a expectativa gerada pela adaptação para o cinema, feita no ano anterior. E não uma adaptação qualquer. De Olhos Bem Fechados (1999) foi o último filme do consagrado diretor norte-americano Stanley Kubrick, que não dirigia desde Nascido para Matar (1987).

O momento atual é diferente. Longe de quaisquer expectativas e polêmicas ligadas ao filme, o livro pode ser lido agora com maior independência ou relido como o clássico que é. Pouco importa que não se trate de uma edição revigorada por novos comentadores ou prefácios explicativos. É exatamente a mesma tradução de 2000, assinada por Sérgio Tellaroli e a inovação é apenas no formato. Sem problema. É até curioso, mas a proposta enxuta da coleção (feita para caber no bolso) contribui para salientar o que deve ser enfocado: o texto. E o texto de Schnitzler, em qualquer formato, em qualquer momento é sempre bem-vindo. Breve Romance de Sonho não é exceção. É leitura rara: adulta, inteligente e obrigatória.

Breve Romance de Sonho é um dos romances derradeiros de Schnitzler. E, talvez, mais que qualquer outro romance seu editado no Brasil, o melhor exemplo de sua sutileza e talento para tratar dos grandes temas da sua literatura: o amor, a morte e a sexualidade.

No genial primeiro capítulo, que vale pelo livro todo, a autor, amparado por um narrador preciso e isento, mostra como são frágeis os alicerces burgueses sobre os quais o casal Fridolin e Albertine erige sua tranqüilidade. Alicerces incapazes de suportar sequer o diálogo do casal, primeiro supostamente displicente e curioso sobre os pequenos flertes em que ambos se envolvem durante um baile de máscaras na noite anterior e depois agudo, confessional e quase cruel sobre fantasias mais graves e profundas do passado. A narração desses diálogos construídos por palavras que ferem fundo o casal é exemplar do modo sutil com que Schnitzler constrói sua prosa.

"Exageravam a atração que sobre eles haviam exercido os desconhecidos parceiros de baile, zombavam da reação ciumenta que o outro deixava transparecer, negando a sua própria. E, no entanto, da charla (conversa) ligeira acerca da aventura insignificante da noite anterior, mergulharam ambos numa conversa mais séria sobre desejos ocultos, quase insuspeitos que, mesmo nas almas mais puras e cristalinas, logram produzir turbilhões perigosos e sombrios."

Posteriormente, toda a trama do livro é a breve viagem que, sonhando ou acordado, tanto faz, o médico Fridolin empreende no submundo de Viena. Viagem a um só tempo melancólica e erótica, funcionando em parte para buscar algo que o personagem não sabe exatamente se quer, em parte para reparar algo que não sabe exatamente o que é e que foi, talvez, perdido na ou despertado pela conversa com a esposa Albertine. Nesse sentido, Breve Romance de Sonho é um singular road book subjetivo sobre desejo e fantasia. E os lugares nos quais aterrisa durante a viagem – e ela própria – são, embora desconhecidos, estranhamente familiares para o "viajante" Fridolin.

Operando em registro indistinto (ou de fronteiras voláteis) entre a fantasia e a realidade, Schnitzler constrói a atmosfera onírica e o ritmo singular do livro. Atmosfera que ajuda a distinguir a trama complexa de Breve Romance de Sonho de uma banal história de ciúme e vingança. A segurança de Fridolin não é abalada apenas pelas confissões da esposa, mas também pelo reconhecimento de suas próprias. E é justamente essa ambiguidade e incerteza que dita o ritmo gradual e envolvente da trama. Assim Schnitzler permite – quase propõe – ao leitor que caminhe ao lado de Fridolin em cada passagem do livro, e negando explicações simplórias para as questões que se abrem, deixa uma sensação "estranhamente familiar" também para o leitor adulto.

Verdadeiramente aberto para interpretações e leituras variadas, o romance de Schnitzler não deve ser confundido com a leitura que Kubrick faz dele em De Olhos Bem Fechados. O filme, embora interessante, não consegue fugir à tentação hollywoodiana de tentar explicar tudo no final, mesmo quando não há resposta adequada ou resposta alguma. O roteirista de Kubrick, Frederic Raphael, resolveu dar respostas "convincentes" ao romance que considerou "muito literário e sem progressão" e, assim, diluiu o seu maior valor, numa espécie de romance policial "bem resolvido". E só não se apagou inteiramente graças a absurda competência de Kubrick em recriar parte da atmosfera onírica de Schnitzler, mesmo com um "roteiro explicativo". E, à maneira de Schnitzler, sem condenar ou absolver o casal.

Serviço:

Breve Romance de Sonho, de Arthur Schnitzler. Companhia de Bolso, 112 págs., R$ 14,50.

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"Na rua, precisou abrir o casaco. O degelo começara de súbito, a neve na calçada derretendo-se já quase por completo, e, no ar, soprava um hálito da primavera iminente. (...) O candeeiro revestido de verde que pendia do teto baixo lançava um brilho pálido sobre a cama e as cobertas, debaixo das quais jazia estendido e imóvel um corpo franzino. O semblante do morto achava-se envolto em sombras, mas Fridolin o conhecia tão bem que julgou vê-lo com toda nitidez (...)."

Trecho de Breve Romance de Sonho, de Arthur Schnitzler, traduzido por Sérgio Tellaroli.

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