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"Não temos mais debate nenhum"

Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) diz que a intolerância intelectual no Brasil vem se acentuando desde as manifestações do último mês de junho e tendem a se acirrar em 2014, ano de eleição presidencial

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Há um clima de ódio instaurado na vida política do ­Brasil, que vem se agravando ao longo dos últimos anos em decorrência do embate de forças entre o PT e seu principal opositor, o PSDB. A constatação é do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista concedida à Gazeta do Povo. Para ele, o país não oferece um ambiente propício à dissonância, à divergência de pontos de vista. "Os períodos de democracia no Brasil são muito limitados." Leia a seguir trechos da conversa.

Temos percebido, nos últimos tempos, um recrudescimento no debate ideológico e intelectual no país. O senhor crê que isso tem, de fato, ocorrido ou é apenas uma impressão surgida da repercussão dada pelas mídias sociais?

Isso me chama a atenção há pelo menos cinco anos. Eu dei uma conferência na Universidade de Columbia [em Nova York] sobre o ódio na política brasileira há três, quatro anos. Eu percebi que esse clima ficou muito forte, e isso está muito ligado ao enfrentamento entre o PT e o PSDB. Me parece que esse ódio vem mais do PSDB, mas isso é de certa forma natural, a oposição ter mais ódio do governo do que o contrário. Acho que a mídia social aumenta a ressonância disso, mas não é a causa: o fenômeno já existia antes, mas é amplificado, porque a mídia social cresce em uma progressão geométrica. Ela favorece uma coisa muito narcisista. Você tem duas perspectivas no Facebook, por exemplo: a que poderia ser, e não é, e a que é.

Qual poderia ser?

A perspectiva de espaço de debate. Seria o que a gente na área de Filosofia Política chama de ágora, a praça de discussão no sentido grego. A ideia de que você, em Atenas, tem um espaço onde todo mundo discute, e isso é o que de melhor existe na democracia. Então, o Facebook, por exemplo, favorece uma igualdade de participação, em que todas as pessoas estão no mesmo patamar. Ele tem regras, como a limitação de cinco mil amigos, o que reduz a desigualdade entre as pessoas. O sucesso de um usuário é em grande parte decorrente do seu mérito de granjear pessoas que repercutam aquilo que ele posta. Todos esses fatores reduzem a desigualdade econômica, o que não ocorre na mídia tradicional. Tudo isso poderia oferecer um espaço de discussão mais amplo e livre. Mas isso não acontece. O que a gente vê no Facebook é uma reprodução das mesmas posições. Quando eu posto alguma coisa, e coloco uma pergunta, a minha percepção é a de que as pessoas apenas reafirmam o que já haviam dito antes. Por exemplo, há um mês ou dois, coloquei uma pergunta: "Alguém mudou sua opinião a respeito do mensalão em decorrência do julgamento? Alguém que achava que os acusados eram inocentes, se convenceu da culpa deles; ou alguém que acreditava na culpa deles, acreditou que o julgamento foi injusto?" Eu tive mais de cem respostas, e não houve uma única pessoa que dissesse: "Eu mudei de opinião". Aliás, a maior parte nem tocava na questão que eu fiz. Diziam: "Bando de bandidos" ou "Julgamento fraudulento!". A minha pergunta não era respondida. A conclusão à qual eu cheguei é que a disposição para o diálogo em uma rede social é muito baixa. Você pode ter discussão, mas é do tipo: "Eu não aprendo e não mudo nada! Não mundo nunca de ideia". Então, isso é muito preocupante: você tem a ferramenta perfeita para uma coisa melhor, mas não consegue.

O senhor crê que as elites culturais no Brasil estão dispostas a dialogar ou elas tendem a se fechar para as vozes dissonantes, que discordem de seu pontos de vista?

O Brasil não tem tradição de dissonância, de discussão. Aqui, por muitas razões, a ideia basicamente é: concorda-se ou então se está diante do mal. Fazendo uma diferenciação entre a ética e a política. Na ética, você está lidando com o certo e o errado, vamos dizer, ou com "o bem e o mal", entre aspas mesmo. É muito difícil aceitar a discordância sobre grandes questões éticas. Agora, a política não é assim: você tem de aceitar que existem posições divergentes, mas respeitáveis. É claro que não quer dizer que todas as posições são aceitáveis, como a defesa do preconceito, da ditadura, do genocídio, que não são respeitáveis. Mas você sai disso e entra em um debate padrão como, por exemplo, entre o socialismo e o liberalismo. Nenhum dos dois lados é sórdido. Você pode ter liberais corruptos e socialistas bandidos, mas isso não elimina a dignidade das duas causas. Mas isso não ocorre. Aqui no Brasil, a gente não tem uma conduta política minimamente razoável. Então, temos a tendência de acreditar que quem diverge de nossas ideias é corrupto, é indecente e está errado. E isso tem custo altíssimo, do ponto de vista do avanço do país, porque o diálogo praticamente não existe.

Por que não existe?

Você tem coisas que precisam ser construídas a partir do contato, do confronto, e não são. E, desse ponto de vista, o conflito entre PT e PSDB acabou fazendo com que dois partidos que nasceram da luta contra a ditadura desenvolvessem um tal clima de ódio que é muito difícil você fazer eles se juntarem em pontos nos quais poderiam se unir.

É possível encontrar na história do Brasil elementos que nos ajudem a compreender como se dão esses debates sobre temas polêmicos? O senhor diz que o país não tem uma tradição de aceitar o dissonante.

Primeiro, os períodos de democracia no Brasil são muito limitados. Nós tivemos uma relativa democracia entre 1945 e 1964, em que vemos uma expressão muito limitada da esquerda, e tivemos uma democracia muito melhor de 1985 para cá. Mas é tudo. Se comparar com os Estados Unidos e a Europa, há uma distância gigantesca. Ao longo dessa história, quase sempre houve a tendência de termos um único discurso dominante, desde o período colonial. Além disso, a falta de imprensa até 1808, e a inexistência de universidades até 1930, limitam muito a capacidade de formação brasileira. Todos esses fatores foram muito severos. Nós temos um aspecto positivo, comparado a outros países de língua espanhola, que é nós sermos menos violentos. A morte violenta não foi algo tão forte no Brasil. Nós não tivemos tantas guerras civis como na América hispânica. Mas mesmo de uma forma mais discreta, temos a tendência de acreditar que apenas um caminho é o certo. E isso está fazendo com que o Brasil perca uma oportunidade gigantesca nestes últimos 20 anos. Nós temos um sistema institucional que permite a divergência, mas nós temos atores se movendo nesse caminho que negam o direito à divergência.

O senhor pode exemplificar esse ponto de vista?

A Justiça eleitoral no Brasil, do ponto de vista da tolerância, é melhor do que o candidato. Nós temos muitos atores na área da política, que negam o direito do outro, ou melhor, se pudessem calar o outro, calariam.

Como vê essa discussão em torno das biografias não autorizadas?

Eu não consigo entender esse caso. Acho que há dois atores que tomaram protagonismo nesse caso. Um é o cantor Roberto Carlos e o outro é a [produtora cultural] Paula Lavigne. Os demais têm falado muito pouco a respeito. O Roberto Carlos Carlos tem uma trajetória consistente, que vem de décadas, em que ele vem proibindo a produção de biografias sobre ele, e que coloca em um mesmo pacote uma biografia escandalosa da década de 80 e esse livro do Paulo César de Araújo [Roberto Carlos em Detalhes], que eu li e no qual não vejo nada demais. É um assunto do Roberto, e eu não consigo entender o que o move. Já a Paula Lavigne é o sonho de todo mundo que deseja a liberação total das biografias, porque ela se expressa de maneira muito antipática. O que me preocupa em relação às biografias, e eu sou a favor da liberação, é que toda a discussão está se dando em torno de celebridades, e nada está sendo dito em relação a personagens históricos. Isso é até bom, porque é muito mais importante saber a verdade sobre Getúlio Vargas, sobre o ditador [Emílio Garrastazú] Médici, do que sobre o Caetano Veloso. Mas os argumentos valeriam para todos. Se alguém quiser fazer uma biografia sobre Paulo Maluf, esse livro pode ser proibido.

Em relação a essa questão do debate, da polarização e da intolerância, como o senhor vê o papel desempenhado pelos grandes meios de comunicação de massa?

É ruim, porque eles próprios não acreditam no direito à divergência. Você pega, por exemplo, a Folha de S. Paulo. O jornal tem um número enorme de colunistas, mais de cem articulistas permanentes de opinião, e desses, se existirem dois ou três que tendem para a esquerda, é muito. Você tem o Jânio de Freitas e o Vladimir Safatle. Isso favorece a ideia de que não há um equilíbrio de opinião. Hoje, se você quiser equilíbrio de opinião, terá de ler os blogs. Você não consegue encontrar um espaço de debate. O próprio Fernando Henrique Cardoso tentou criar um site, o Observador Político, que acabou virando um portal, sobretudo, de tucanos, e até de gente que está à direita dos tucanos.

A pluralidade, defendida por muitos veículos de comunicação em suas linhas editoriais, é apenas um recurso de retórica na grande imprensa?

A pluralidade está na lei, ela é garantida pelo Judiciário, porém a instituição é melhor do que o uso que estamos fazendo dela. Assim como a instituição Justiça Eleitoral é melhor do que os candidatos: a instituição liberdade de imprensa é melhor do que o uso que se faz dela. Esse uso é muito pobre. Não há espaço para o debate que inclua os vários lados. O que resta disso é quase apenas para inglês ver.

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