
O suplemento literário de um jornal, quando existe, jamais passa imperceptível aos olhos da comunidade intelectual de toda a cidade. Na Curitiba do final dos anos 1950 pequena em tamanho, porém fervilhante de ideias , a página letras e/& artes (assim mesmo, em minúsculas) foi o acontecimento que colocou em evidência os poetas, ficcionistas, críticos, filósofos e artistas plásticos que iniciavam suas carreiras sem as facilidades da autodivulgação que a internet proporcionou na virada do século. Criada pelo então jornalista e hoje também escritor e cineasta Sylvio Back, a página foi publicada aos domingos no extinto jornal Diário do Paraná uma das meninas dos olhos do magnata da comunicação Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados entre 1959 e 1961.
A vida curta da publicação talvez tenha facilitado o resgate: meio século após sua extinção, as 85 edições do suplemento foram restauradas em uma coleção fac-similar, organizada por Back com o apoio da secretaria estadual da Cultura do Paraná e do patrocínio da Itaipu Binacional, distribuído gratuitamente em bibliotecas, universidades e centros literários públicos e privados.
No texto de apresentação, Sylvio Back conta como entrou na sede do Diário do Paraná sem nunca ter visto uma redação, aos 17 anos, e como, aos 22, se tornou o editor da página dominical, coordenando com completa liberdade. "A publicação chamava a atenção porque tudo era acondicionado numa plataforma gráfico-visual que destoava de toda a imprensa paranaense, inclusive do próprio Diário do Paraná, e muito frequentemente da própria orientação política do jornal", conta Back em entrevista à Gazeta do Povo por e-mail.
De fato, a página apresentava conceitos gráficos modernos para a época, como a valorização de espaços em branco, ilustrações conceituais e utilização de minúsculas em todos os títulos inexplicavelmente, conta Back, o título do caderno era impresso ora com o "e" do alfabeto, ora com o "&" comercial.
O conteúdo também era igualmente arrojado. Poesias, contos, críticas literárias e ilustrações de nomes que se tornariam proeminentes nos anos seguintes, como o já experiente escritor Valêncio Xavier, os artistas plásticos Paul Garfunkel, Alberto Massuda e Ênio Marques Ferreira, e os jornalistas Luiz Geraldo Mazza, Roberto Muggiati e Yvelise Araújo, entre outros, recebiam espaço ali, além de textos dos já nacionalmente famosos Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. "Havia uma fúria do bem, nada de acertar as contas com o passado ou com os pretéritos intelectuais, acadêmicos ou institucionais. A meta consistia em motivar, incendiar e fazer valer a produção e a criatividade do presente", explica o criador do caderno.
Legado
Um dos mais assíduos colaboradores do suplemento foi o jornalista, escritor e tradutor Roberto Muggiati. Repórter da Gazeta do Povo na época, colaborava gratuitamente com a página pelo interesse em fomentar discussões e opiniões a respeito das várias vertentes artísticas.
"Era uma época de intensa acentuação cultural. Tivemos coisas como a bossa nova e o cinema novo aqui no Brasil e a explosão da cultura beat nos Estados Unidos. A letra e/& artes era um foco de opinião e informação e serviu bem ao propósito de agitar a vida intelectual da cidade, que na época devia ter perto de 300 mil habitantes", lembra Muggiati. Para ele, a restauração do projeto, mais do que a função de resgate memorialístico, auxilia a compreender a vida artística da cidade na época: "O Rio de Janeiro e São Paulo têm esse passado muito bem documentado, mas pouco se sabe hoje como pensava Curitiba naqueles anos. O suplemento ajuda a compreender a formação cultural da capital hoje".




