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Entrevista com Flávio Gomes, jornalista especializado em automobilismo, comentarista da ESPN Brasil e colunista do portal IG

Para o jornalista Flávio Gomes, o carro é um documento. Pensando em retratos possíveis de diversos momentos históricos, o admirador de Ladas e Decavês (DKWs) coleciona 26 veículos.

Qual a primeira lembrança que você tem de um carro?

Na década de 1970, meu pai comprou uma Variant vermelha. Era o primeiro carro novo que meu pai comprava. Eu fiquei tão empolgado com aquilo que na primeira noite, antes de dormir, fui dar um beijo nela. Isso vem de criança. Eu curtia os carros, principalmente os Decavês (DKW). Em 1975, viajamos para o Sul, de carro. Havia muitos Decavês por lá e meu pai sempre me mostrava, animado. Fiquei com o carro na cabeça. Então, naquele ano, ele me deu duas miniaturas e eu as tenho até hoje. Naquele tempo, nas décadas de 1960 e 1970, a relação do brasileiro com o carro era diferente. Era o começo da indústria automobilística do país, a classe média começava a ter condições de comprar carros. Era inédito.

Qual o porquê dessa fissura no objeto carro. O que acha que o levou a isso?

O carro na minha infância era algo muito importante. Quando comprávamos um, era um acontecimento na família. E tenho a impressão de que os carros guardam muitas histórias alegres. Ele também pode ser visto como uma conquista do pai, da família. É a mesma coisa que, digamos, a casa própria hoje. O carro era mais valorizado. A relação entre o proprietário para com o seu carro era mais forte. E hoje eles são descartáveis. As pessoas ficam pouco tempo com eles, porque os carros mais modernos não têm personalidade. O carro virou um meio de locomoção. Antes ele era propriedade da família. Eu gosto de carros por isso: eles carregam histórias.

Qual a sua relação com o automóvel hoje?

Virei colecionador. Tenho 26 carros. A maioria é nacional, das décadas de 1960 e 1970 – o Decavê é minha maior paixão. Tenho alguns Ladas também. O meu carro do dia a dia é um Audi A3 ano 1997. Tirei zero e vou morrer com ele. Mas, também, ando com os mais antiguinhos. Pena que em São Paulo não dá para andar mais por causa do trânsito. E não saio com eles na chuva, por exemplo.

Você sente uma animosidade em relação ao automóvel hoje? Em que medida o carro, ou o grande número de carros, pode atrapalhar a vida nas cidade?

O carro virou o grande vilão da humanidade. Tornou-se, por exem­­plo, um desafio para os publicitários, que têm que vendê-los. É quase como o cigarro nesse sentido. Tornou-se uma vergonha achar um carro legal porque polui, gera aquecimento global, gera trânsito etc. Eu refuto totalmente essa questão de vilania. O problema não é o carro. É um problema de gestão de transporte no planeta. O carro é só mais um meio de transporte que ainda confere a quem o possui uma liberdade de locomoção. Ninguém é obrigado a ter carro, mas as pessoas são quase obrigadas porque o transporte público é deficiente. É injustiça dizer que o carro é um vilão. Ele é apenas um dos componentes da industrialização que nos afeta.

Em São Paulo, por exemplo, na estão moda os carros grandes, co­­mo A Tucson (Hyundai) a Hilux (Toyota), a Sportage (Kia). Isso é uma aberração, porque esses carros gigantes são utilizados por uma pessoa só. Nesse ponto, enxergo algo de mal no carro, porque aí ele é visto somente como símbolo de status. Nessa situação, ele não serve à necessidade prioritária para a qual ele foi criado.

Há uma pesquisa recente de uma organização não-governamental que diz que, nas famílias em que o chefe tem o ensino médio completo, o gasto com educação representa 4,9% do orçamento, enquanto o gasto com aquisição de automóvel, combustível e manutenção representa 10,8%. O que pensa sobre isso?

Isso é seríssimo. É justamente essa a parcela da população que vê o automóvel como símbolo de status. Mas há várias aquisições que podem ser comparadas a isso. Tem gente que gasta mais em joias, em televisão, em bens eletrônicos do que em educação. Ainda acho o carro muito caro aqui no Brasil. Há, sim, quem deixe de comprar o carro, tendo em vista algo mais importante naquele momento.

Para um colecionador, o que o carro representa?

Várias coisas. O colecionador enxerga o carro também como forma de preservação da história e da cultura. O automóvel é o retrato instantâneo da tecnologia de determinada época e das relações trabalhistas e da economia de um país. É o produto final de um momento específico. O carro é um documento que serve também para a preservação da história. Por meio de alguns, conseguimos entender o momento histórico pelo qual atravessava o Brasil. Além disso, o carro antigo te dá alguns prazeres sutis na condução que o carro moderno não dá. Um carro novo te conduz mais do que ao contrário. As pessoas hoje também não tem a noção de como um carro funciona. Antes, eles quebravam muito, as estradas eram precárias, então os motoristas aprendiam a lidar com seus carros, a entendê-los melhor. Outro ponto é nostalgia, aquela coisa de um tempo ido que eu não vivi ou que eu vivi e quero relembrar. Isso é possível com um carro antigo. É um culto à nostalgia.

Existe algum motivo que o convenceria a não usar mais o seu carro?

Não, nenhum. Ninguém jamais vai me convencer disso, porque aí estariam tirando de mim um prazer. Eu eu sinto prazer em dirigir. É a minha liberdade, de ir aonde eu quiser na hora em que eu quiser. Poderiam até me convencer em algumas situações, como ir de casa ao trabalho de metrô. Mas isso se as condições fossem adequadas.

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