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"Meu nascimento foi um produto do turismo e da diplomacia," dizia Julio Florencio Descotte Cortázar, que veio ao mundo em 26 de agosto de 1914 em Ixelles, subúrbio de Bruxelas. O pai era adido comercial da Argentina na Bélgica, a Primeira Guerra estava em seu primeiro mês, a família se mudou para a Suíça e depois Barcelona. Tinha quatro anos quando a família se instalou em Banfield, na Grande Buenos Aires; aos seis, o pai sumiu para sempre e Julito cresceu com a mãe e a irmã menor. Sem dinheiro para cursar uma universidade, formou-se professor por uma escola normal e, mesmo sem diploma, ensina literatura na faculdade de Cuyo, em Mendoza. Seu trunfo era ter passado a infância e adolescência mergulhado nos livros, por causa da saúde precária e longos períodos de cama. Aos nove anos já tinha lido tudo de Júlio Verne, Victor Hugo e Edgar Allan Poe – autores que lhe provocavam fortes pesadelos. Devorou até o dicionário Petit Larousse. "Passei minha infância numa bruma de duendes, e elfos, com um sentido do espaço e do tempo diferente dos demais." Aos 19, leu Ópio: Diário de uma Desintoxicação, de Jean Cocteau, seu livro de cabeceira para toda a vida. Opositor do peronismo, renunciou aos cargos de professor quando o general venceu as eleições de 1946. Em 1948, formou-se tradutor juramentado de francês e inglês, fazendo em nove meses um curso que normalmente durava três anos – esforço que lhe valeu um colapso nervoso (uma de suas manias era procurar baratas na comida). Nesse ano conheceu a tradutora Aurora Bernárdez – hoje, aos 94 anos, herdeira e curadora dos papeis do ex-marido em Paris.

Sem receptividade para seus escritos – Bestiário, publicado em 1951, teve uma aceitação restrita – sufocado pelo peronismo, mudou-se para Paris, onde morou até morrer, 33 anos depois. Aurora o acompanhou no ano seguinte e casaram-se em 1953. Cortázar sobrevivia como tradutor. Já em 1952 trabalhava como freelance para a Unesco. Em 1954, participou das Conferências Gerais em Montevidéu e Atenas. Nessa, conheceu o escritor peruano Mario Vargas Llosa, também tradutor. A tradução de Cortázar das obras completas de Edgar Allan Poe para a Universidade de Porto Rico rendeu-lhe US$ 15 mil. Com o dinheiro, no final dos anos 50, comprou e reformou um velho galpão de três andares na Place du Géneral Beuret, no quinzième. Segundo outro escritor latino-americano que morou em Paris, Carlos Fuentes, o galpão tinha "escadas que nos obrigavam a descer subindo, segundo uma fórmula secreta de Cortázar".

Amarelinha

Foi lá que terminou seu projeto literário mais ambicioso, Rayuela (O Jogo da Amarelinha), publicado em 1963. Curiosamente, esse romance e grande parte de seus contos se passam em Paris, o cenário eleito da ficção cortazariana. Até El Perseguidor, baseado no saxofonista Charlie Parker (1920-1955) e impregnado da atmosfera jazzística de Manhattan, foi transplantado para Montparnasse e Saint Germain-des-Prés. Amarelinha é uma história de amor no clima surrealista do amour fou de Nadja, romance que André Breton publicou em 1928, inserindo fotos em meio ao texto, o que Cortázar também fez. Mas o argentino adicionou outro plano formal ao romance, com o título inspirado no jogo infantil da amarelinha: a opção de saltar os quadrados numerados rabiscados no asfalto se transforma, no livro, em saltitar a esmo os 155 capítulos, ou fazê-lo seguindo uma ordem indicada pelo autor. Uma heroína esotérica (La Maga), um herói romântico (Horacio Oliveira) e um bando boêmio (o Clube da Serpente), entregues a atividades lúdicas desenfreadas no grande parque de diversões (senti)mental que é Paris – Rayuela tem conquistado corações e mentes rebeldes dos anos 60 até hoje. Virou cult e existe até um roteiro que pode ser acessado pela internet, o Diccionario Cortázar-Paris-Rayuela.

Um ano antes de Rayuela, Cortázar publicou Histórias de Cronópios e Famas, um painel surrealista em que cataloga satiricamente os seres humanos segundo seu comportamento social. Curiosamente, em 2011, três cientistas argentinos, em homenagem a Cortázar, batizaram de Cronopio dentiacutus um mamífero do período Cretáceo, cerca de uns 100 milhões de anos atrás.

Política

No rastro das comoções políticas de 1967, Cortázar deixou Aurora e juntou-se à lituana Ugné Karvelis, uma relação informal que o levou mais à esquerda ideologicamente, mas só durou até 1970. Empenhou-se na luta pelos direitos humanos na América Latina, apoiando a Cuba de Fidel, o Chile de Allende e os sandinistas da Nicarágua. Entrou então em cena a americana Carol Dunlop, parceira derradeira que morreria em 1982, dois anos antes de Julio. Com ela, Cortázar empreendeu uma longa viagem numa van adaptada pela rodovia Paris-Marselha, que resultou no relato Los Autonautas de la Cosmopista.

Embora as mortes de Carol e Cortázar fossem atribuídas a câncer e/ou leucemia, a amiga e ex-amante do escritor, a jornalista uruguaia Cristina Peri Rossi – na biografia que fez do escritor em 2001 e em depoimento ao jornal Clarín em 2014, nos 30 anos da morte de Cortázar – afirma que ele contraiu AIDS em 1981 através de uma transfusão de sangue, quando quase morreu de uma hemorragia estomacal.

Seja qual for a causa de sua morte, o autor de Rayuela continua a brindar leitores do mundo inteiro com novos textos. Do galpão surreal do quinzième arrondissement em Paris, Aurora Bernárdez tem garimpado novos textos, como os que lançou em 2009, em colaboração com Carles Álvarez Garriga, na coletânea Papéis Inesperados. Agora, a dupla acaba de publicar Cortázar de la A a la Z – Un Álbum Biográfico, espécie de enciclopédia que revela em verbetes os gostos e as idiossincrasias do escritor — uma prova de que o cronópio centenário está mais vivo do que nunca.

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