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Para Julio Cortázar, o jazz era o tipo de música mais propício à imaginação | Reprodução
Para Julio Cortázar, o jazz era o tipo de música mais propício à imaginação| Foto: Reprodução

"Eu suingo, logo existo." Julio Cortázar chegou a adaptar o famoso cogito, ergo sum de Descartes para manifestar sua paixão pelo jazz — para ele, o tipo de música mais propício à imaginação. O escritor, que tocava trompete, falou dela em seus romances, contos e crônicas, e também adotou na sua escrita o ritmo, as estruturas e sonoridades do jazz. "Descobri a música em Buenos Aires aos dez anos. Não entendia as letras, mas alguém cantava em inglês e era mágico para mim. Tinha 14 anos quando ouvi Jelly Roll Morton e Red Nichols, Mas, ao ouvir Louis Armstrong, notei a diferença."

Em seu principal romance, O Jogo da Amarelinha, Cortázar faz extensas referências ao jazz nos capítulos 17 e 18.

• "... era divertido ouvir a chuva na claraboia e Jelly Roll Morton cantando "Stood in a corner , with her feet soaked and wet..."

• "... uma música que se permitia todas as imaginações e todos os gostos, a coleção de afônicos 78 com Freddie Keppard ou Bunk Johnson, a exclusividade reacionária do Dixieland, a especialização acadêmica em Bix Beiderbecke ou o salto para a grande aventura de Thelonious Monk, Horace Silver ou Thad Jones, o kitsch de Erroll Garner ou Art Tatum, os arrependimentos e as abjurações..."

• "... dessa liberdade (o jazz) fez um jogo estético ou moral, um tabuleiro de xadrez onde se reserva ser o bispo ou o cavalo..."

Um de seus contos mais importantes, o atipicamente longo El Perseguidor (55 páginas), baseia-se na saga trágica do saxofonista Charlie Parker (1920-1955), e já virou filme e HQ.

Em La Vuelta al Día en Ochenta Mundos Cortázar descreve dois concertos. Na Paris de 1952, "já se desencadeou o apocalipse, porque Louis [Armstrong] nada mais faz do que levantar sua espada de ouro e a primeira frase de "When It’s Sleepy Time Down South" cai sobre a gente como uma carícia de leopardo." Em Genebra, 1966, Thelonious Monk: "...os dedos vão resvalando pelo piano, primeiro na própria beira do teclado, onde poderia haver um cinzeiro e uma cerveja, mas não há mais do que Steinway & Sons, e logo inicia imperceptivelmente um safári de dedos pela borda da caixa do piano enquanto o urso se deita cadencioso..."

Cortázar também disseca a gravação de "Ghost of a Chance", feita por Clifford Brown em 1954, dois anos antes de morrer num desastre de carro aos 25 anos: "Quando quero saber o que sente o xamã no mais alto de uma árvore, cara a cara com a noite fora do tempo, escuto uma vez mais o testamento de Clifford Brown como um bater de asas que desgarra o contínuo, que inventa uma ilha de absoluto na desordem. E depois, de novo o costumeiro, onde ele e tantos mais estamos mortos."

Menciona ainda o saxofonista tenor Lester ‘Prez’ Young, no início de La Vuelta al Día en Ochenta Mundos: "Ao meu xará [Júlio Verne] devo o título desse livro e a Lester Young a liberdade de alterá-lo sem ofender a saga planetária de Phileas Fogg, Esq. Uma noite em que Lester enchia de fumaça e chuva a melodia de "Three Little Words", senti mais do que nunca o que fazem os grandes do jazz, essa invenção que segue sendo fiel ao tema que combate, transforma e matiza. Essa noite de Lester era um ir e vir de pedaços de estrelas, de anagramas e palíndromos que em certo momento me trouxeram inexplicavelmente a recordação do meu xará..."

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