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Peça de ouro asteca | Reprodução
Peça de ouro asteca| Foto: Reprodução
  • Documento, com data de 1756, que atesta a contabilidade do ouro feita na época
  • Mapa de 1717 registra caminho para as minas de ouro, com destaque para a Vila de Nossa Senhora do Carmo

Com quantos quilos de ouro se forja uma nação? O Brasil, tal como se apresenta, custou mil toneladas, quantidade jamais extraída de um único país. Mas, como essa montanha de metal saiu daqui, quando, de onde, por que, levada por quem? Fustigado por essas dúvidas, durante três anos um repórter de boa cepa garimpou a riqueza tirada do Brasil pelos portugueses. Não só o rastro dourado, mas também as ambições, traições, mortes, conspirações e tudo mais quanto pode mover o homem estão no livro Boa Ventura! A Corrida do Ouro no Brasil (1697-1810), do mineiro Lucas Figueiredo.

Lucas faz parte da leva de jornalistas que nas últimas três décadas tem devassado a história brasileira para nos oferecer uma melhor compreensão do nosso passado, isentos dos vícios academicistas. Um grupo que conta com nomes como os de Fernando Morais, Fernando Gabeira, Eduardo Bueno, Zuenir Ventura, Roberto Pompeu de Toledo e, claro, o best seller Laurentino Gomes. Não é de hoje que jornalistas se metem a contar a História (vide Euclides da Cunha), mas essa participação cresceu no vazio da produção acadêmica, que ficou voltada para si mesma. A vantagem do jornalista sobre o historiador é saber dialogar melhor com o leitor.

No caso de Figueiredo, Boa Ventura! traz um vigoroso relato da constituição do Brasil como nação, sem o risco do juízo de valor a respeito da forma arbitrária e cobiçosa como isso se deu. Não é tarefa fácil, dada a necessidade de descrever as muitas conspirações, os inúmeros conchavos e as incontáveis traições que levaram ao ouro. A leitura dos fatos como eles se deram, à luz de uma exata prospecção histórica, é capaz de abalar mitos e heróis sem que se faça necessário o recurso fácil dos adjetivos. Figueiredo consegue a façanha ao associar o rigor histórico à fluidez jornalística, numa escrita limpa, ágil e atraente.

O autor considera o trabalho tão braçal quanto intelectual. Foi necessário esforço extra para primeiro entrar numa seara que não era a dele, a História, o que o obrigou a ser ainda mais rigoroso consigo mesmo ao apurar as informações. O resultado dessa investigação dá bem a medida do esforço. O trabalho resulta de minuciosa pesquisa a 23 arquivos e acervos históricos no Brasil, na França, em Portugal, Benin e Inglaterra. Lucas também consultou 120 livros em inglês, francês e português. Boa Ventura traz ainda 864 notas explicativas. Tudo isso num relato cronológico que ajuda a compreender melhor a História.

O livro nasceu de uma pauta do jornal onde Figueiredo trabalhou como repórter especial. No fim de 2004, o diretor de redação do Estado de Minas, Josemar Gimenez, lançou o desafio de tentar fazer o que ninguém havia conseguido: mostrar o que foi feito do ouro retirado do Brasil, em especial de Minas Gerais. O jornal contratou uma professora de História e, por seis meses, Figueiredo trabalhou a pauta com ela, período em que leu 57 livros sobre o assunto. O processo todo levou quase um ano, com pesquisas na Inglaterra, Portugal, França e Benin. O caderno especial ganhou em 2005 o Prêmio Esso, o mais antigo do jornalismo brasileiro.

A reportagem ganhou outros prêmios, mas ainda não explicava tudo. Figueiredo cansou de ouvir "essa história dá um livro, quero saber mais". De fato, uma história como essa não se esgotaria em cinco ou seis páginas de jornal. Ademais, o autor é do tipo de jornalista que não se contenta enquanto não esgota o assunto até o talo. Assim como os portugueses fizeram em solo brasileiro, ele se propôs a cavar a História para encontrar o destino do ouro por eles levado. Em dado momento, ele se viu numa encruzilhada, tendo de escolher entre uma das tantas atividades que desenvolvia ao mesmo tempo. A veia de escritor falou mais alta.

Autor experimentado, Figueiredo já havia publicado Morcegos Negros (2000, sobre a corrupção no governo Collor), Ministério do Silêncio (2005, sobre a história dos serviços secretos brasileiros) e O Operador (sobre o mensalão, o mineiro e o nacional). Em 2008, pediu demissão do jornal para escrever o livro Olho por Olho: os Livros Secretos da Ditadura. No meio daquele ano o livro estava pronto, aí se dedicou ao Boa Ventura!, Nesse período, trabalhou na pesquisa de 12 a 14 horas por dia. O problema, segundo ele, era processar a quantidade de informações de que dispunha. "Um parágrafo me obrigava a ler por umas cinco horas, checando números, datas, informações", diz o escritor. Os pés-de-página também levavam tempo (foram 864, lembra?).

Boa Ventura! trata do legado do ouro brasileiro para o mundo. "Os portugueses ficaram 200 anos dando com os burros n’água, mas foram persistentes", observa Figueiredo. Não fosse essa persistência, não só a geopolítica sul-americana teria sido diferente como o mundo teria se organizado de maneira diferente numa época em que as nações se posicionavam no tabuleiro do poder econômico. Foi o ouro tirado do Brasil, do Império Inca, do México e das Antilhas que irrigou a Europa e fortaleceu o recém-nascido sistema mercantilista, em substituição à economia feudal. Ou seja, a corrida do ouro nas Américas redesenhou a política econômica mundial à época.

O livro é uma quase ode camoniana àqueles que abriram caminho para a corte portuguesa encontrar o tão cobiçado ouro e contribuíram com a própria vida – movida em geral por desmedida ambição – para forjar o Brasil continental. A obra não julga ou opina – porque a necessária isenção histórica e jornalística –, mas oferece informações suficientes para conclusões. Antes de cobrar dos portugueses o ouro que nos foi tirado, talvez fosse de bom alvitre a leitura de Boa Ventura!. Eis, ora pois, uma história bem contada.

Serviço

Boa Ventura! A Corrida do Ouro no Brasil (1697-1810), de Lucas Figueiredo. Record, 368 págs., R$ 39,90.

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