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 | Henry Milléo/Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milléo/Gazeta do Povo

Relação

Manual de bruxaria

Se restaurar um livro pode ser entendido com uma espécie de ministério semelhante às práticas copistas mais antigas de produção de conteúdo, é interessante observar, em uma época de intensas discussões sobre o futuro do livro – e da imprensa num módulo mais elevado – a relação do indivíduo com o objeto. "A maior satisfação é quando devolvemos o material e o cliente fica espantado com o resultado. Espantado de bom que ficou, né?", descreve Jessica. Maria Angela Faria, restauradora desde 1998, relembra o dia em que devolveu um artefato e o cliente olhou quase absorto: "Você é uma bruxa!".

Fundada em Curitiba, num dezembro de 2003, a Arco.it é a associação que reúne a maior parte dos restauradores da cidade. Eles se reunem mensalmente, "entre 50 e 100 pessoas, não sei ao certo", diz Maria Angela, para falar destas questões etéreas, como o restauro de uma Bíblia Sagrada de 1780 e a atualidade do pensamento de Cesari Brandi, bússola moral do segmento. "Considero tudo o que chega até nós como obra de arte, embora não nos consideremos artistas. Fazemos ciência", completa Maria Angela.

  • Ciência da palavra: restauração exige trabalho meticuloso e fuga do ideal de reforma, sem cola e durex

Eles olham para um jornal e chamam de suporte papel, passam meses recuperando uma página oxidada por questões de foro íntimo, citam a Convenção de Haia de 1952 como se estivessem comentando o ataque do Brasil na Copa, desprezam com todas as forças do espírito quem chama o ofício de reforma e se irritam quando perguntam sobre restauro de dentes: são os restauradores de livros.

"Todo mundo tem um quê de restaurador chuncheiro na alma", diz Ana Eliza Caniatti, restauradora formada em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). Ela é uma das engajadas na causa da memória impressa e organizadora do Escudo Azul, espécie de Cruz Vermelha da preservação de bens culturais. "Às vezes dá até uma vontade de chorar quando chega um objeto que passou por uma ‘intervenção’ antes. Tem gente capaz de usar cola e fita crepe e chamar isso de restauração."

Heréticos

O Escudo Azul é uma organização internacional formada por voluntários interessados na riqueza cultural das cidades. São restauradores, museólogos, engenheiros, conservadores (não no sentido político estreito), encadernadores e bibliófilos que realizam palestras e cursos para prevenir catástrofes que possam danificar o patrimônio – recentemente, o grupo promoveu um treinamento com o Corpo de Bombeiros de Curitiba. E as catástrofes podem ser desde uma inundação de acervo até um ataque arrasador de gorgulhos (besouros).

Cuidado: Xilófagos!

De modo geral, conservação-restauração é a ação de recuperar a integridade de um bem cultural ou torná-lo mais compreensível e utilizável, sem corromper suas características originais. Entre todos os materiais que a natureza trata de abraçar em fúria ou aqueles que o ser humano consegue degradar com sua peculiar intensidade, o papel é o mais delicado e sensível.

A cartilha Conservação Preventiva de Acervos, de Lia Teixeira e Vanilde Ghizoni, ambas pesquisadoras da Fundação Catarinense de Cultura, recomenda jamais marcar o texto com grafite, tintas ou dobras na área superior ou inferior das folhas; não comer, beber ou fumar perto de livros; não umedecer os dedos com saliva para virar páginas ou separar documentos e, por fim, não apoiar os cotovelos sobre os materiais, ação irresponsável que pode causar rompimento e separação de cadernos.

Além disso tudo, o papel, em condições de umidade relativa desinteressante, está sujeito a reações de oxidação. E aqui mora o magnificente perigo: ambientes com clima quente e úmido são extremamente favoráveis a infestações de fungos, roedores, bactérias e insetos xilófagos, como o cupim e o gorgulho, a popular broca.

O processo de recuperação de um material impresso não é simples: primeiro se fotografa, analisa, pesquisa, se realizam testes químicos e, então, o trabalho começa, podendo durar de uma semana a um ano. A restauradora Jessica Petri, formada em Artes Visuais pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), está devolvendo à vida a raríssima primeira edição (oxidada) de Traité de Métaphysique (Tratado de Metafísica), de Charles Richet, Nobel de Medicina de 1913. A curiosa obra, de 1923, narra os estudos do autor em telecinésia, ectoplasmia e clarividência. Está bem avariada.

Em sua bancada também consta uma edição comum de Iracema, de José de Alencar, terror dos estudantes de ensino médio, pronta, aguardando a retirada do cliente. "Muitos livros são recuperados por conta da trajetória afetiva que carregam", afirma Maria Angela. "Mas também acontece de a pessoa ligar perguntando toda semana, amar, amar, amar o livro e, depois de pronto, demorar ou acabar não vindo buscar."

Noites sem passado

Se os índices de leitura já nos colocam em condições gerais similares ao analfabetismo funcional, não surpreende a preservação do patrimônio material no que tange aos livros não ser prioridade nas políticas públicas. Segundo Vivian Letícia Busnardo Marques, professora da Embap e especialista em Conservação e Restauração de suporte papel, há carência de cursos qualificados no Brasil.

"A profissão é pouco difundida e ainda não é reconhecida. Porém, as instituições buscam especialistas que recuperem seus acervos. Atualmente, o nosso maior desafio é o reconhecimento da profissão, a divulgação e valorização destes profissionais que pesquisam e buscam a permanência de acervos culturais", alega Vivian.

A falta de cursos de capacitação na área pode refletir um certo espírito de nosso tempo. "No Brasil há uma desvalorização de nossa memória, não apenas impressa. Temos algumas regiões com maior cuidado histórico, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, ainda assim, é pouco diante do que precisa ser feito. Curitiba, então, é ainda mais periférica, embora o cenário esteja melhorando", completa Ana Eliza.

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