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Diogo Vilela desempenha a difícil tarefa de encarnar um dos mais complexos personagens shakespearianos, o malévolo Iago | Divulgaçnao/Verinha Valflor
Diogo Vilela desempenha a difícil tarefa de encarnar um dos mais complexos personagens shakespearianos, o malévolo Iago| Foto: Divulgaçnao/Verinha Valflor

Os curitibanos terão a oportunidade de assistir a interpretação de Diogo Vilela como um vilão implacável em Otelo , de William Shakespeare (1564-1616). Além de assumir a co-direção da encenação com Marcus Alvisi, Diogo Vilela desempenha a difícil tarefa de encarnar um dos mais complexos personagens, shakespearianos, o malévolo Iago, que consegue enredar, através da intriga e da dissimulação, quase todos os demais personagens que são manipulados como fantoches. Iago, como o vilão das mil máscaras, é o mais habilidoso dos atores que também dirige e escreve o enredo. Pode-se aí vislumbrar o jogo teatral que Shakespeare explorou com extrema sutileza e habilidade em várias de suas obras: por este viés, a metáfora da vida como teatro torna-se uma das temáticas principais da peça. Entretanto, o jogo de espelhos não termina aqui.

Diogo Vilela, coincidentemente, é um ator que representa um personagem que assume vários papéis dentro representação, além de também ser o diretor da peça e o seu co-autor uma vez que, em conjunto com Alvisi, está apresentando uma das múltiplas possibilidades de leitura da tragédia shakespeariana. Ainda dentro desse universo, vale lembrar que o próprio Shakespeare era, além de escritor e, certamente, "diretor" de suas peças, um ator. Será que ele também não representou o papel de Iago em algumas de suas incursões no palco?

Na realidade, dificilmente, em uma produção cênica ou fílmica, o personagem Iago não assume a "direção do espetáculo" que, como já mencionado, é uma característica intrínsica do personagem criado por Shakespeare. A dominação absoluta da cena por Iago através da preponderância da palavra que lhe permite articular o direcionamento de toda a trama representa o elemento detonador do desenrolar trágico que assola as vidas de Otelo e Desdêmona. Entretanto, a representação no palco deste "vilão com cara de honesto" exige que o ator alcance o tênue equilíbrio entre os elementos trágicos e os quase cômicos, entre o que é dito e não dito explicitamente, ou seja, a nuance do subtexto.

Um personagem como Iago exige, por outro lado, que a interpretação do Otelo, personagem-título da peça, represente o seu contraponto tanto cênico quanto dramático. É por esse motivo que a atuação de Marcello Escorel, como Otelo, merece um destaque especial neste espetáculo: a voz eloqüente de Otelo mostra-se digna da grandeza trágica quando Iago desperta-lhe "o monstro de olhos verdes" que precipita o dilaceramento do herói entre forças contraditórias causando-lhe um sofrimento irremediável na sua queda moral e física.

Otelo, o general mouro, é respeitado e é considerado indispensável para os governantes de Veneza por seus méritos militares. Na abertura da peça, o Duque, novamente, conclama os seus serviços para que Veneza seja capaz de impor o seu poderio em Chipre. No entanto, esta mesma sociedade lhe é preconceituosa quando o ridiculariza pelo "negrume de seu peito" e o acusa de ter conquistado a juventude e beleza de Desdêmona através do uso de "sórdidas magias". Agora, ele é reconhecido apenas como um estrangeiro e um negro. Por essas questões, muito mais do que a inveja dissimulada de Iago e o ciúme obsessivo de Otelo, esta peça flagra uma discussão consideravelmente mais ampla e profunda. O embate entre os interesses do Estado e do indivíduo, entre os valores representados por Veneza e por Chipre, entre os articuladores do poder e os submetidos a ele, entre o gênero masculino e feminino e entre as questões culturais e raciais é a espinha dorsal desta tragédia.

O amor entre Otelo e Desdêmona origina-se de uma aproximação frágil e idealizada entre eles – "Ela me amou porque passei perigos, // E eu a amei porque sentiu piedade" – que os leva a um casamento precipitado que é destruído antes que a relação tenha tempo de se tornar estável ou, até mesmo, de ser efetivamente consumada. Dentro dessa conjuntura, acredito que não deva ser preterido o fato de que Otelo é caracterizado por Shakespeare como um guerreiro maduro que, apesar de ser experiente nos campos de batalha e no enfrentamento dos perigos e percalços como soldado, não pode ostentar a mesma experiência no amor. Ao ser persuadido por Iago de que fora enganado por sua esposa, ele próprio tenta desvendar os motivos que possam ter levado Desdêmona à traição: "Quiçá por ser preto, // E faltem-me as artes da conversa // Dos cortesãos, ou por estar descendo // Para o vale dos anos". Desdêmona, por outro lado, é caracterizada pelo dramaturgo inglês como sendo bela, suave, ingênua e quase adolescente que, na sua inquietude e curiosidade juvenil, se apaixonou por tudo o que Otelo representava: a experiência de soldado e a vida de aventuras do mouro cativaram a inexperiente menina que demonstrou ser generosa para com ele ao transparecer as suas emoções.

Por todas essas circunstâncias, não me restam dúvidas de que a escolha de Marcella Rica, atriz estreante, de pouca idade e bastante expressiva, tenha sido muito adequada para imprimir ao papel de Desdêmona a necessária jovialidade e deslumbramento ao estar recém inserida no mundo dos adultos que se revela, a cada instante, menos promissor para ela.

O desempenho de Rose Abdallah como Emília é primoroso: ao tornar-se um contraponto para a jovem personagem/atriz, a esposa de Iago é apresentada como uma mulher bem mais experiente que Desdêmona, muito mais vivida e dona de seus pensamentos quando introduz o tema da infidelidade conjugal feminina para a recém-casada que, por sua vez, apressa-se em reiterar que não acredita que existam mulheres infiéis.

O que impressiona em Shakespeare é a multiplicidade de leituras que seus textos permitem, o que confirma as palavras de J. Guinsburg de que "há tantos Shakespeares quantas as etapas e as transformações fundamentais do teatro e de suas correspondentes cosmovisões". Embora o teatro elisabetano tenha sido extremamente popular na época, Shakespeare jamais teve uma audiência maior do que em nossos tempos: ele continua a dialogar com a contemporaneidade devido às recriações cênicas, fílmicas e literárias, onde a dinâmica das vozes interativas permite vislumbrar propostas de interpretações que vão desde as mais tradicionais até as mais ousadas e contemporâneas.

Professora da Universidade Federal do Paraná, em estágio pós-doutoral na UFSC, sob o patrocínio do CNPQ.

Serviço

Otelo. Teatro Guaíra (Praça Santos Andrade, s/nº), (41) 3315-0979. Texto de William Shakespeare. Direção de Diogo Vilela e Marcus Alvisi. Com Diogo Vilela e Marcelo Escorel. Hoje, às 21 hoas. R$ 80 e R$ 40 (meia). Assinantes da Gazeta do Povo e portadores do Cartão Teatro Guaíra contam com 20% de desconto na compra de até dois ingressos (não-cumulativo com outros descontos). Classificação indicativa: 14 anos.

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