• Carregando...
A escritora inglesa Virginia Woolf: experimentadora da estrutura | Reprodução
A escritora inglesa Virginia Woolf: experimentadora da estrutura| Foto: Reprodução
  • Milton Hatoum e o romance nacional

O romance foi o último gênero literário a surgir e o último a ser aceito como obra de arte. Se antes já era difícil defini-lo, dada a sua plasticidade, no século 20 isso se tornou quase impossível. A estrutura romanesca evoluiu no sentido de uma complexidade cada vez maior e os autores se tornaram cada vez mais insatisfeitos com a mera narrativa de uma história. Além disso, a variedade de autores e de estilos particulares tornou impraticável poder abarcar o gênero com a precisão de uma definição. O fato é que os chamados autores modernistas, quer dizer os grandes experimentadores da estrutura como Joyce, Woolf, Gide, Proust, Faulkner, dificultaram ainda mais a tarefa, por diferirem profundamente uns dos outros.

Façamos uma revisão: de início, o romancista foi um contador de histórias e se contentou com isto durante bastante tempo. Para encantar os leitores, embelezou-as com protagonistas extraordinários e feitos sobre-humanos. Mas o romance é uma expressão da época em que é produzido. Inevitavelmente refletiu as transformações pelas quais o mundo passou. Uma delas, a democratização das sociedades ocidentais e a ascensão de uma classe realista e pragmática ao poder, a burguesia, com seus ideais mais terra-a-terra do que os valores heróicos da aristocracia.

Por isso, à medida em que as sociedades se democratizaram e que a visão idealista foi desaparecendo junto com a sociedade aristocrática, a noção de heroísmo foi se modificando e com ela a de herói. As histórias e os heróis romanescos refletiram a mudança tornando-se mais banais, mais comuns, como a sociedade burguesa em que eram produzidos. O ser maior do que a vida se enfraqueceu e o burguês passou a ser considerado digno de ser retratado em seu meio, com ambições mais modestas, mais concretas.

Mas o que os personagens foram perdendo em heroísmo foram ganhando em complexidade psicológica. Do herói do romance de cavalaria que saía pelo mundo sem se modificar com o tempo e as experiências, pois era "nobre" e só comprovava seu valor inato, passou-se a um novo herói, o indivíduo que precisa tornar-se algo, como Julien Sorel, de Stendhal. Este se faz no tempo, com as experiências que o modelam.

Ao mesmo tempo em que isto acontecia, os romancistas foram se tornando mais conscientes das possibilidades técnicas do gênero e aumentando a complexidade de suas obras. Passaram a retratar as novas realidades com mais recursos formais, na tentativa de descrever a vida como ela é, acompanhando o desenvolvimento histórico, quer dizer, a ascensão da burguesia e o fortalecimento do individualismo em sociedades democráticas. Isto quer dizer sociedades com mobilidade social, em que as aspirações individuais podem se tornar realidade. Mas que podem também levar ao choque e à desilusão, como o romance demonstra em Os Sofrimentos do Jovem Werther [de Goethe], em O Vermelho e o Negro [de Stendhal], em Madame Bovary [de Flaubert].

O romancista também passou a ter uma percepção diferente de seus poderes como criador. Amplia suas ambições, tentando abarcar cada vez mais dados do mundo exterior, compondo painéis completos da sociedade, tarefa a que se dedicaram Balzac, Tolstoi, e Zola. Acreditavam-se capazes de reproduzir toda a realidade. Os modernistas desprezarão essa presunção, apoiando-se nas descobertas das ciências do fim do século 19 e início do século 20, que desconstroem a noção tradicional de "realidade". [...]

A sensação de crise foi agravada por um fator decisivo, a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918. Com milhões de mortos, o uso do gás para matar e outros horrores, ela decretou o fim do ideal iluminista, da crença no progresso com a divulgação do conhecimento. Fim da crença na racionalidade humana.

Ainda não é possível ter uma visão completa dessa crise, mas todos conhecem o impacto na arte e na literatura das novas percepções sobre o mundo interior e o mundo exterior. No romance, foi um abalo sísmico que levou à produção de obras extremamente complexas para a maioria dos leitores, com uma desconstrução de seus elementos estruturais. [...]

Aquilo que havia levado séculos para se alcançar, a representação completa da sociedade e dos caracteres, o eu e o mundo, é abandonado. O que era fundamental para Balzac, Stendhal, Tolstoi ou Zola, a dimensão social, o ser agindo no mundo, torna-se irrelevante. O passo adiante consiste em reproduzir as repercussões interiores dos fatos com técnicas próprias, como o monólogo interior e o fluxo de consciência. [...]

O leitor tem um papel ativo nestas narrativas, já que cabe a ele organizar e reconstruir em sua mente os acontecimentos, que aparecem misturados e fragmentados. Quando há um enredo, como no caso de Faulkner, que sempre conta histórias dramáticas, mas desorganizadas, cabe ao leitor extraí-lo do emaranhado de sua narrativa. E como se dá a construção dos personagens, se não se acredita mais que sejam centros de consciência estáveis e estão sempre em mutação?

Virginia Woolf os constrói a partir daquilo que denomina "breves flashes de momentos de ser", que são os "instantes de intensidade mágica" de nossas vidas, quer dizer, aqueles raros instantes em que estamos plenamente conscientes de estarmos vivos. Joyce chama isso de "epifania", momentos de súbita iluminação, de extrema consciência sobre a essência das coisas. Como só interessam os "momentos de ser", a fragmentação da narrativa é ainda maior.

Ao se chegar ao fim do século 19 e início do 20, novas formas e novos conteúdos permitem uma explosão dos recursos do gênero romance. Aquilo que havia se iniciado com o Werther, o mergulho no "eu" do jovem protagonista, completou-se com o fluxo da consciência, que permite visões da consciência humana insuspeitadas até então, com a reprodução do surpreendente discurso mental.

* Thais Rodegheri Manzano é jornalista, escritora, tradutora e professora de História da Literatura na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Este texto reproduz trecho de seu livro mais recente, E Se a Literatura Se Calasse? – Os Impasses do Romance da Antiguidade ao Século XX (Ed. Terceiro Nome).

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]