Em abril de 1841, saía na revista Grahams Ladys and Gentlemans Magazine, da Filadélfia (EUA), uma ficção intitulada "Os Assassinatos na Rua Morgue" (The Murders in the Rue Morgue), assinada por Edgar Allan Poe, na época editor da publicação. Essa novela de 40 páginas é considerada o marco inaugural do romance policial e introduz o detetive C. Auguste Dupin, precursor dos investigadores da linhagem de Sherlock Holmes e Hercule Poirot.
Dupin reaparece em apenas duas outras histórias de Poe, "O Mistério de Marie Rogêt" (1842) e "A Carta Roubada" (1844). Um narrador anônimo, amigo e admirador de Dupin, relata os processos dedutivos através dos quais o protagonista soluciona os crimes. "A Carta Roubada" começa assim:
"Em Paris, justamente depois de uma noite escura e tormentosa, no outono de 18, desfrutava eu do duplo luxo da meditação de um cachimbo feito de espuma-do-mar, em companhia do meu amigo C. Auguste Dupin, em sua pequena biblioteca, ou gabinete de leitura, no terceiro andar da Rua Dunôt, no bairro de Saint-Germain. Por uma hora pelo menos mantivemos um profundo silêncio; cada um de nós, aos olhos de um observador casual, teria parecido atenta e exclusivamente ocupado com as volutas de fumaça que adensavam a atmosfera do aposento."
Palavra por palavra, parece uma noitada de Watson e Sherlock Holmes no seu apartamento de Baker Street, em Londres.
Arthur Conan Doyle, que lançou o detetive Sherlock em 1887, admitiu sua dívida para com Poe: "Cada história sua é uma raiz da qual evoluiu toda uma literatura." Segundo Francis Lacassin, Poe inventou "um arquétipo literário: o detetive amador, o homem que coleciona enigmas como outros colecionam objetos."
Poe depreciava sua criação: "Estas histórias de raciocínio (tales of ratiocination) devem muito da sua popularidade ao fato de serem algo numa nova linha. São engenhosas, é verdade mas as pessoas as consideram mais engenhosas do que são, por causa do seu método e de sua aura de um método." No fundo, o seu fascínio se devia menos à história em si, mas ao escritor e à sua maneira de narrar.
Terror
Em seus contos, que publicava caudalosamente nas revistas literárias, Poe criou várias vertentes além da "policial". No conto de terror, abriu caminho para autores de todas as épocas como H.P. Lovecraft, Algernon Blackwood e o contemporâneo Stephen King.
Poe era obcecado por temas ligados à morte: enterro prematuro, catalepsia, reanimação de cadáveres, sinais de decomposição. Um de seus contos mais conhecidos é "O Retrato Oval", inspiração inequívoca de O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde.
Nessa fábula de menos de três páginas, o artista pinta o retrato da esposa com tanta paixão que, a cada pincelada, a tela ganha vida e a modelo a vai perdendo, até a pincelada final, em que a pintura vive e a mulher morre. Extasiado diante de sua obra, o pintor exclama: "Mas isto é mesmo a própria Vida!"
O coração delator é uma fábula de crime e culpa em que um jovem, oprimido pela prepotência do amo, mata o velho e enterra o corpo debaixo da casa. Tomado por alucinações, ouve o coração do morto bater por baixo do assoalho.
Estranhando a ausência do velho, policiais o visitam e, atormentado pelas batidas do coração que não lhe dão trégua, acaba se entregando. O âmago desta história lembra a culpa e a confissão de Raskolnikov em Crime e Castigo é bem possível que Dostoiévski tenha lido a história em francês na tradução de Charles Baudelaire, feita em 1848, que tornou Poe mais admirado na Europa do que nos Estados Unidos.
Baudelaire o considerava um "farsista e prestidigitador", o grande ilusionista das letras americanas. Outro conto célebre, "O Barril de Amontillado", é um sinistro ato de vingança durante o Carnaval de Veneza em que o ofendido empareda vivo o ofensor numa adega.
"O Gato Negro" é a fusão dos dois temas: da culpa e do emparedamento. O estado delirante dos personagens, geralmente atribuído por Poe ao alcoolismo, os coloca num mundo irreal e fantasmagórico, quando não os mergulha inexoravelmente na loucura.
Futuro
Outro gênero de que Poe foi pioneiro é a ficção-científica. Júlio Verne, seu discípulo confesso, chegou até a escrever uma sequência para "A Narrativa de Arthur Gordon Pym". Também influenciado por Poe, H.G. Wells afirmou: "Pym relata o que uma mente muito inteligente poderia imaginar sobre a região polar sul um século atrás."
"Eureca", ensaio de 1848, inclui uma teoria cosmológica que prenunciava em 80 anos a Teoria do Big Bang.
Outra área que Poe explorou foi a criptografia: o conto "O Escaravelho de Ouro" causou sensação e popularizou os criptogramas em jornais e revistas.
O famoso criptólogo americano William Friedman, que leu "Escaravelho" quando criança, decifraria depois um famoso código dos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Simon Singh, em O Livro dos Códigos, diz que "Poe escreveu um conto sobre cifras que tem sido amplamente reconhecido pelos criptógrafos profissionais como o melhor exemplo de literatura de ficção sobre o assunto",
Tivesse investido em C. Auguste Dupin que cativou o público na época como Conan Doyle investiu em Sherlock, Poe teria se tornado um autor best seller meio século antes do sucesso retumbante de Doyle. Mas sua mente era inquieta demais para se fixar numa só coisa.
Imaginação brilhante, valendo-se da forma compacta do conto, Poe é um gigante da literatura, talvez aquele que abriu mais portas para os escritores que o sucederam. Delineou o anti-herói moderno que surgiria na ficção de Dostoiévski, Kafka, Beckett e Borges.
O outsider de "O Homem da Multidão" prenuncia O Estrangeiro de Camus e o protagonista de A Náusea, de Jean-Paul Sartre.
Como escreveu George Bernard Shaw em 1909, "Poe constante e inevitavelmente produzia mágica enquanto seus maiores contemporâneos produziam apenas beleza. A supremacia de Poe nesse respeito custou-lhe sua reputação. Acima de tudo, Poe é grande porque se mostra independente de atrações baratas, independente de sexo, patriotismo, combate, sentimentalismo, esnobismo, glutonice e o resto das ferramentas vulgares da sua profissão."
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"Poe constante e inevitavelmente produzia mágica enquanto seus maiores contemporâneos produziam apenas beleza. A supremacia de Poe nesse respeito custou-lhe sua reputação. Acima de tudo, Poe é grande porque se mostra independente de atrações baratas, independente de sexo, patriotismo, combate, sentimentalismo, esnobismo, glutonice e o resto das ferramentas vulgares da sua profissão."
George Bernard Shaw, escritor e dramaturgo, em 1909
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