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Nos anos 1970, o produtor Pelão gravou Nelson Cavaquinho e Adoniran Barbosa em registros clássicos | Ranulfo Pedreiro/Jornal de Londrina
Nos anos 1970, o produtor Pelão gravou Nelson Cavaquinho e Adoniran Barbosa em registros clássicos| Foto: Ranulfo Pedreiro/Jornal de Londrina

Londrina - O elevador se abre e dois olhos profundos saem emoldurados por um grande bigode. João Carlos Botezelli, o Pelão, procura um lugar qualquer para fumar. Só nos resta o canteiro central de uma alameda aos fundos da Catedral de Londrina. O Sol vai esticando as sombras enquanto Pelão puxa pela memória. Se alguém perguntar a importância deste produtor, basta dizer que ele foi o responsável pelo primeiro disco de Cartola.

Era véspera de Dia dos Pais, e Pelão trocou o carinho da família "pela cultura brasileira". Veio de São Paulo para dar uma força ao amigo Cléber Toffoli, pesquisador de música brasileira e apresentador do programa Voz & Viola na Igapó FM. Naquela noite, o Voz & Viola completava 20 anos com um show da dupla Zé Mulato & Cassiano. E Pelão adora dupla caipira.

Os olhos se apertam para evitar a fumaça, e Botezelli lembra que, ainda jovem, começou a trabalhar com a Orquestra Simonetti, contratada pela TV Excelsior. De lá, foi parar na TV Tupi. E iniciou um vaivém com o Rio de Janeiro, onde conheceu meio mundo. "Eu pegava um avião, ia para o Rio, saía com o Nelson [Cavaquinho] do Teatro Opinião e voltava com ele para São Paulo", recorda.

Numa dessas, visitou alguns amigos na antiga Odeon. Saiu de lá com a missão de gravar Nelson Cavaquinho. "Gravei do jeito que quis, com o violão do Nelson em todas as faixas, dois canais, o som é fantástico. Eu apresentei o Nelson como ele era", ressalta. O LP Nelson Cavaquinho saiu em 1973 e faturou os principais prêmios da época. "Era fácil lidar com o Nelson, só que ele gostava de beber três noites e três dias seguidos, sem dormir."

A repercussão foi fantástica. Aí Pelão resolveu gravar Adoniran Barbosa em 1974. Mas os amigos se estranhavam: "O Adoniran era muito ansioso, a gente brigou muito". Para salvar o fiapo de voz do compositor, Pelão cortou uísque e cigarro. Adoniran, que não era otário, reclamava do produtor em pleno show: "Estou proibido de fumar por causa do Pelão". E o público respondia jogando maços de cigarro no palco. Cinco meses depois, a Odeon encarregou o produtor de gravar novamente Adoniran. "Ele tinha um baita repertório, não tinha erro." E, em 1975, outra pérola chegava aos mercados.

Convidado pelo violonista Théo de Barros, Pelão foi para a gravadora Marcus Pereira, onde fez discos antológicos. Cartola, que era dado como morto após sumir por anos do Morro da Mangueira, foi encontrado por acaso pelo cartunista Lan (Lanfranco Vaselli), que o levou ao escritor Sergio Porto. Pelão e Cartola passaram dois anos ouvindo recusas de gravadoras: "Aqui não é asilo de velhos", ou: "Aqui nós já temos os Pholhas".

Sem dentadura

Foi na Marcus Pereira que a oportunidade finalmente surgiu. Graças à amizade, Pelão alertou: "Cartola, não vai ter ninguém aqui [no estúdio]. Então, você tira a dentadura e guarda, tá?". A artimanha tinha motivo, uma vez que os dentes postiços atrapalhavam a voz do compositor.

Gravado, o LP enfrentou outro obstáculo. Marcus Pereira duvidava do talento de Cartola, ainda mais quando confundiu a cuíca de Mestre Marçal com um cachorro latindo. O lançamento foi para a geladeira. Um dia, sem querer, Pelão encontrou o jornalista Maurício Kubrusly, que trabalhava no Jornal da Tarde. Conversa vai, conversa vem, o produtor abriu o jogo: "Gravei o Cartola, mas não sei quando vai sair". No sábado, o JT trouxe uma nota: "Já está gravado o melhor disco do ano". Marcus Pereira liberou imediatamente o LP. E se mandou para o Rio. "Ele saiu como um louco, pegou um avião e foi conhecer o Cartola", lembra Pelão. O disco Cartola, de 1974, segue inabalável entre os mais importantes da música brasileira.

A conversa segue no fim de tarde, lembrando nomes como Raphael Rabello, Inezita Barroso, Roberto Corrêa, Radamés Gnatalli. O rol de talentos que passaram pelas mãos de Pelão é impressionante. Mas, depois de tantos discos e shows, o dinheiro anda difícil. "Claro que eu ganhei alguns trocadinhos, mas eram trocadinhos. Nunca tive porcentagem", revela. Enquanto a indústria fonográfica sucumbia ao lucro insaciável, Pelão seguia seu tino artesanal, cuidadoso, na base da amizade. "Era tão despretensioso, era tanto amor, tanta vontade de fazer..." Lentamente, o homem de olhos profundos retorna ao quarto de hotel, disfarçando o coração grande. Pergunta se a conversa vai virar matéria. "Vai sim." "Então não deixe de dar uma moral para o Cléber Toffoli", solicita. Em primeiro lugar, sempre os amigos.

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