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A literatura (brasileira ou não) se torna mais e mais uma coisa de pares, para pares, entre pares. Fora os blockbusters, que respondem a questões, urgências e necessidades completamente diferentes (e legítimas, deixa eu me apressar em dizer), a prosa e a poesia mais interessadas em fazer evoluir as formas e seu público ficam meio num cantinho esquisito, que torna mais do que esquisito o trabalho do resenhista. Pois em geral o que resta fazer é dizer ao público que já está interessado em ler os novos autores, que tal ou qual novo autor vale a pena.

A primeira coisa que cabe dizer em um texto que se refere a O Paraíso É Bem Bacana (Companhia das Letras), terceiro romance de André Sant’Anna, é justamente o contrário. Você precisa ler esse livro. Seja você quem for.

Se você começou a ler este caderno, esta resenha, devo presumir que você tem algum (qualquer) interesse por literatura: e isso basta. Mais do que representar essa ou aquela geração, muito mais do que exemplificar uma ou outra transgressão (é barato pôr o livro, por conta dos palavrões por exemplo, na mera conta da marginália: Ulysses e Madame Bovary foram proibidos por indecência..), muito além de corroborar este ou aquele hype recente o livro de André Sant’Anna é pura e simplesmente, na opinião deste escriba, grande literatura.

Sabe clássico?

Arriscado isso de querer prever futuros. Mas o fato é que O Paraíso É Bem Bacana, por uma série de quesitos que inclusive precedem a atribuição de valores finais (presta ou não presta; melhor ou pior), se coloca definitivamente na prateleira dos livrões.

E começa por aí. O livro é grande. Em uma literatura que parece ter feito do romance breve sua forma de escolha, ele se apresenta de cara com mais de quatrocentas páginas.

Mais ainda, ele seguramente inscreve lá o nome do seu André na lista dos inventores de linguagem da literatura brasileira. Seu livro ostenta aquilo que bem pode ser o melhor tratamento da oralidade brasileira que já se pôde encontrar. Numa literatura que parece ter uma trava em sua relação com a oralidade, que lhe permite apenas representar (ou, pior, caricaturizar) a fala oral regionalizada, e que na maioria dos casos faz com que seus personagens (mesmo no palco!) falem um português curiosamente falado apenas na literatura, ele se apresenta de cara com uma série de relatos acuradíssimos, muito eficientes e extremamente interessantes da fala brasileira das classes populares urbanas. Além de engraçados pacas.

O Mané e o Uéverson falam bem como aquelas pessoas que a gente pode ouvir às vezes na fila do banco..

Mas não é só isso que faz um clássico. O principal há de ser uma compreensão mais acurada da realidade humana do que a que nós, pobres plebeus, conseguimos obter sozinhos.

E como diabos fazer isso num livro sobre um guri meio debilóide, com complexas e irresolvidas obsessões sexuais, que é catapultado para o Santos F.C apesar de achar que Renato Gaúcho é deus (além de seu pai, nas horas vagas), vendido para o Hertha Berlin, onde vem a conhecer alguns muçulmanos e a se interessar pela idéia de se martirizar apenas para ganhar o paraíso povoado por 72 virgens que lhe prometem os panfletos? E ele se explode.. e o romance quase todo é narrado desde sua cama no hospital..

Mas o que a habilidade, o ouvido lingüístico de André Sant’Anna traem é um profundo interesse pelo outro. Ele escreve sobre psicólogas alemãs e mães bêbadas do litoral paulista com a mesma autoridade que projeta para a voz de centroavantes gabolas e mártires de Alá. Ele parece entender todas essas pessoas. Parece ser um pouco cada uma delas. E dar-lhes voz (o romance é narrado em dezenas de vozes diferentes), e dar coerência a essa voz, vira só um primeiro passo.

E se o poder da literatura é encapsular em signos, em um símbolo, o que não podemos compreender racional e escolasticamente, talvez sejam mesmo necessárias as quatrocentas páginas para fazer com que os problemas de um cara que não tem nada, nada que ver comigo e com você acabem revelando o quanto você é que na verdade não percebia que tinha de radicalmente familiar ali naquela condensação brutal, naquela simplificação metafórica tão violenta.

Freud já mostrou que cada um de nós tem suas aberrações. Que cada um quer seu paraíso. Ler esse livro já é entender aquilo e ganhar um pouco disto.

Caetano Waldrigues Galindo é tradutor e professor de lingüística histórica na Universidade Federal do Paraná.

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