
Eu diria que 1961 foi o inverno do meu descontentamento. Tinha terminado um curso de jornalismo em Paris, viajara o verão todo, vivera o sol da meia-noite na Finlândia e o sol do meio-dia na Itália e de repente, sem dinheiro, só me restava voltar para Curitiba. Como último recurso para ficar um pouco mais na Europa, lembrei do convite do governo alemão, feito ainda em Curitiba. Reatei os contatos e, na noite de 10 de dezembro, um domingo, eu embarcava para a Alemanha no aeroporto de Orly num avião da BEA.
Depois de uma segunda-feira protocolar em Bonn, voei no começo da noite para Berlim. Aterrissei no aeroporto de Tempelhof vendo espiões por toda parte. A cidade me apavorava e ao mesmo tempo me fascinava. Imaginem uma megalópole partida ao meio: o lado ocidental, capitalista; o lado oriental, comunista. E essa metade capitalista estava incomodamente encravada em território comunista. Assim era a Berlim que eu visitava pela primeira vez. Para tornar a divisão ainda mais concreta, os alemães orientais ergueram o muro. Quatro meses depois do início da sua construção, fui levado por meus gentis anfitriões para posar diante do Portão de Brandemburgo. A série de fotos feita naquela terça-feira gélida, 12 de dezembro, foi distribuída para órgãos de imprensa de todo o Brasil. Uma delas mostrava o jornalista de 24 anos, representante da Gazeta do Povo, ao lado do sinistro cartaz: "ACHTUNG! Sie verlassen jetzt WEST-BERLIN" ("ATENÇÃO! Você está deixando agora BERLIM OCIDENTAL").
O muro que eu vi de perto era uma muralha de blocos de concreto, cimentados uns sobre os outros, reforçada por cercas de arame farpado, além de 300 torres de observação, iluminação abundante, alarmes eletrônicos, centenas de cães de guarda, valas anticarro e antitanque e até arames de tropeço que disparam balas. Mais de 30 mil soldados orientais mantinham a vigilância ao longo dos 165,7 quilômetros totais a soma do muro central (entre as duas Berlins) e das muralhas que separam Berlim Ocidental do território da Alemanha Oriental que a comprime e oprime.
Em contraste com o frio das ruas, os alemães se mostraram muito calorosos. Além da tradição berlinense de hospitalidade, eles sabiam que sua própria sobrevivência dependia de um trabalho inteligente de relações públicas. Minha simpática personal interpreter, Ursula, levou-me um dia para almoçar num restaurante asiático. Atraiu-nos no cardápio um prato indonésio, Reistafel aos 48 Temperos. O garçom disse era preciso encomendá-lo com 24 horas de antecedência. Encomendamos e voltamos lá no dia seguinte para saborear nosso Reistafel.
Às vezes eu me incorporava a um grupo de jornalistas brasileiros, também em visita oficial. Uma noite fomos a um coquetel no terraço do Berlin Hilton, celebrava-se a estréia mundial do filme Julgamento em Nuremberg. Vi de perto meus ídolos Montgomery Clift e Spencer Tracy, uma ocasião rara: morreriam cinco anos depois. A noitada mais divertida foi no Ballhaus Resi, antigo salão de baile transformado em restaurante. O espetáculo no palco não era de humanos, mas de águas dançantes, "die schönsten Wasserspiele der Welt" as mais bonitas do mundo. O salão imenso era todo tomado por mesas numeradas. Cada mesa era equipada com um telefone e um sistema de mensagens enviadas por "pneumáticos": você via uma garota do seu agrado, escrevia um bilhete com o número das mesas (a sua e a dela), colocava o bilhete dentro de um cilindro e enfiava o cilindro na tubulação de ar comprimido que levava a mensagem à destinatária. (Era o autêntico "torpedo", a expressão deve ter surgido daí...) Não só mandei, como recebi alguns torpedos: as garotas alemãs do pós-guerra já eram bastante salientes.
O outro lado
Esse era o clima da cidade sitiada que tentava recuperar o brilho da Berlim da década de 1920, os Anos do Cabaré. Mas o fantasma da Guerra Fria lançava uma sombra sobre tudo e sobre todos. Passados alguns dias, pedi para visitar Berlim Oriental, o "outro lado". Não era uma descortesia, ao contrário, era tudo o que meus anfitriões queriam. Enquanto a Berlim Ocidental alimentada por verbas do mundo inteiro era uma vitrine expondo as mais ricas benesses do capitalismo, Berlim Oriental era uma cidade pobre, escura e triste. Colocaram-me num ônibus de turismo que rodou uma tarde toda por Ostberlin. Foi uma visita insossa, coroada pela visita ao cemitério dos heróis soviéticos tombados na guerra contra o nazismo. Um imenso bloco de granito, que Hitler destinava ao Arco do Triunfo celebrando a vitória do Terceiro Reich, foi transformado num monumento aos gloriosos soldados vermelhos.
Mostrei-me insatisfeito com a visita burocrática e meus obsequiosos anfitriões providenciaram um táxi com um chofer autorizado a circular pelo lado oriental. Assim que atravessamos o Checkpoint Charlie (ponto de travessia controlado pelos americanos), o chofer confraternizou demagogicamente com seus colegas orientais, oferecendo-lhes maços de cigarros. Apontava para a paisagem cinzenta e dizia: "Unterschiede! Unterschiede!" ("Veja só a diferença, o contraste!") Após algumas voltas pela cidade, o táxi foi parar de novo no cemitério dos heróis soviéticos. (Ironicamente, 18 anos depois, visitando Berlim a convite, como editor da Manchete, repeti o mesmo roteiro com o infalível gran finale: a romaria ao cemitério dos soldados soviéticos.)
Farsa?
Houve ainda uma situação kafkiana em Berlim Ocidental: num centro de refugiados, entronizaram-me como uma espécie de juiz para ouvir e interrogar, com a mediação de intérpretes, um punhado de felizardos que haviam escapado do "inferno soviético." Eram relatos cheios de horror, mas por vezes me pareciam ensaiados. Até que ponto eu podia confiar na sua sinceridade? Não passariam eles, como o chofer de táxi, de hábeis atores encenando uma farsa? No fundo, na sórdida guerra de propaganda da Guerra Fria, entre mortos e feridos não se salvou ninguém.
O mundo mudou, o muro caiu, mas jamais esquecerei aqueles dias de desesperança da Guerra Fria, do tenebroso conflito entre duas ideologias que racharam o planeta ao meio, uma guerra travada no campo psicológico à sombra do terror nuclear.



