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A arte e o jazz: um jovem John Coltrane no Guggenheim Museum, em Nova Iorque | Reprodução
A arte e o jazz: um jovem John Coltrane no Guggenheim Museum, em Nova Iorque| Foto: Reprodução

Foi em 5 de maio de 1959, três dias depois de participar da primeira sessão do LP Kind of Blue, de Miles Davis, que John Coltrane gravou "Giant Steps", a primeira faixa do álbum homônimo. Após um início de carreira obscuro, em que tocou para bandas de rhythm & blues e para a orquestra de Dizzy Gillespie, Coltrane surgiu de repente como uma das vozes mais instigantes do jazz moderno – mais precisamente a partir de sua entrada para o quinteto de Miles Davis.

Além de várias gravações, shows e turnês com Miles, entre 1956 e 1958, ele gravou intensivamente para o selo independente Prestige, em álbuns sob seu nome e como sideman dos pianistas Elmo Hope, Red Garland e Mal Waldron, do baterista Art Taylor, do tubista Ray Draper e "conclaves" saxofonísticos com tenorista como Sonny Rollins, Gene Ammons, Hank Mobley, Al Cohn e Zoot Sims – rico material lançado depois numa caixa de 16 CDs.

Em 1959, Coltrane assinou com o selo Atlantic, dos irmãos Nesuhi e Ahmet Ertegun – filhos de um ex-embaixador turco em Washington – , que em dez anos formaram um elenco de blues e jazz incluindo Ray Charles, Aretha Franklin, Charles Mingus e o criador do free jazz, Ornette Coleman. Giant Steps, gravado entre 26 de março e 2 de dezembro de 1959, foi o primeiro álbum formado inteiramente por composições de Coltrane: sete ao todo, acrescidas de oito faixas alternativas que sairiam depois em CD na caixa The Heavyweight Champion/The Complete Atlantic Recordings.

Com seu sopro metálico ao sax tenor e um fraseado rápido como uma metralhadora, Trane, uma das principais vozes do hard bop, era o mais duro de todos, cheio de arestas, um diamante em processo de lapidação.

"Giant Steps (4’44")" é um divisor-de-águas em que Coltrane, o instrumentista consumado, se revela como compositor. Outra faixa do álbum, a balada "Naima", ficaria para sempre uma obra-prima do lirismo coltraneano e, ao lado de "Giant Steps", seria um de seus temas mais tocados.

Em "Naima", o pianista é Wynton Kelly e o baterista Jimmy Cobb, ambos participantes de Kind of Blue. Nas demais faixas, Coltrane é acompanhado por Tommy Flanagan (piano), Art Taylor (bateria) e Paul Chambers (baixo). Chambers, também da turma de Kind of Blue, é homenageado por Coltrane na faixa "Mr. P.C".

Giant Steps , o disco, marca também a despedida de Coltrane do hard bop e seu ingresso no planeta modal, seguindo – ou coincidindo com – os passos de Miles Davis. Este, em sua autobiografia, comenta sobre Giant Steps: "Trane fez o mesmo que eu fiz em Kind of Blue: chegou ao estúdio com rascunhos dos temas que nenhum dos músicos tinha ouvido até então. Aquilo foi um cumprimento para mim."

Em 2003, o álbum foi classificado em 102º lugar na revista Rolling Stone na lista dos 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos. Em 2004, foi uma das 50 gravações escolhidas pela Biblioteca do Congresso para serem adicionadas ao Registro de Nacional de Gravações. Em 1983, o jogador de basquete Kareem Abdul-Jabbar intitulou sua autobiografia em homenagem ao álbum. A Intelligentsia jazzística também foi fortemente afetada. O psicólogo-jornalista Alain Gerber, no livro Le Cas Coltrane, discursa sobre o álbum: "Sem ele, o jazz ficaria castrado. Assim que foi lançado na França, Giant Steps foi imediatamente abraçado como o falo do jazz contemporâneo. Espera-se de sua preciosa seiva que fecunde a vanguarda."

O crítico da New Yorker, Whitney Balliett – o mesmo que definiu o jazz como "o som da surpresa" – comentou: "Que a feiura, como a vida, possa ser bela, é a descoberta surpreendente que fazemos quando nos arriscamos a tomar conhecimento do desafio lançado por Coltrane." Já Charles Hanna foi mais incisivo: "Coltrane tinha algo importante a dizer havia muito tempo, mas só agora encontrou o modo de expressão que lhe convém. Ele toca um acorde de cinco maneiras diferentes, explorando ao máximo cada um dos sons implicados em sua estrutura. Coltrane encontrou o seu caminho."

Em 1955, às vésperas de completar 30 anos de idade, Coltrane estava no fim da linha. Viciado em álcool e heroína, atormentado por problemas emocionais, sofria dores intensas por todo o corpo, particularmente nos lábios, o que quase o impedia de tocar. A entrada para o grupo de Miles Davis salvou sua vida e trouxe o merecido reconhecimento, embora seu som fosse tão inovador que custou a ser aceito. Seu estilo de improvisar, chamado de sheets of sound (lâminas ou lençóis de som), fazia de sua linha melódica uma massa contínua em vez de apenas uma sucessão de notas isoladas. Miles e Coltrane eram personalidades diametralmente opostas. Nas turnês, Miles saía para se divertir; Coltrane se trancava no hotel para praticar. Miles comentou: "Era como se tivesse uma missão a cumprir."

Giant Steps foi um passo enorme na vida de Coltrane. Emancipou-se de Miles e de outros astros do jazz, como Thelonious Monk, e partiu para sua carreira de líder. Em 1960, passou a tocar, além do tenor, o sax soprano, que lhe dava maior mobilidade nas improvisações e o brindou com mais um marco em sua carreira, "My Favorite Things". A partir daí, com o trio ideal formado por McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria), Coltrane galgou patamares raramente alcançados por outro músico de jazz. Embarcou em explorações modais por outros idiomas, como o flamenco (Olé), a música africana (Africa Brass, Kulu Sé Mama) e a indiana (Om). Em 1964, resumiu suas inquietações metafísicas e religiosas em A Love Supreme, um álbum tão importante que mereceu até um livro, do jornalista e crítico Ashley Kahn, A Love Supreme/A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane (Editora Barracuda).

Os anos 1960 foram de intensa crise para o jazz. Para sobreviver em meio à onda do rock, muitos apelaram para a bossa nova como uma tábua de salvação. Coltrane, ao contrário, radicalizou o seu discurso e partiu para uma versão pessoal do free jazz, misturando protesto e religiosidade.

Música e misticismo o levaram além dos limites do espetáculo e o transformaram num profeta dos novos tempos. Miles Davis não errou quando disse que o saxofonista parecia cumprir uma missão. O culto a Coltrane assumiu uma dimensão atingida por nenhum outro músico de jazz: existe em San Francisco, há 30 anos, uma Igreja Ortodoxa de Saint John Coltrane. Sua morte prematura, aos 40 anos, em 17 de julho de 1967, chocou toda uma legião de fãs e discípulos.

Lembro como tive a notícia, naqueles tempos pré-internet, através de uma notinha de cinco linhas no Jornal do Brasil, que naquela edição – como todos os jornais brasileiros – dedicava a quase totalidade de suas páginas à morte do ex-presidente da ditadura militar, o marechal Castello Branco. Existe um poder material na terra, passageiro, e um poder do espírito, perene. Este pertencerá para sempre a John Coltrane, o artífice supremo de Giant Steps.

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