
Questões de autenticidade sempre estiveram presentes no universo do samba. A ligação com os locais e cultura de origem, com a tradição e grandes mestres foi e continua sendo um fator que determina se o músico pode ou não se dizer representante do gênero carioca, que foi elevado ao status de guardião da cultura nacional. Não é de surpreender, então, que uma banda paulista que misturou o samba à música pop, e que seria seguida por uma legião de conjuntos que também desafiariam o tradicionalismo, tenha sido recebida com um pé atrás. Principalmente quando a moda invadiu as rádios e televisões em todo o Brasil e se tornou febre.
O grupo em questão é o Raça Negra, que lançou o primeiro disco, homônimo, em 1991. Substituindo cavaquinho e repique de mão por baixo, bateria e sintetizadores, os paulistas foram seguidos por conjuntos como Negritude Júnior, Exaltasamba, Katinguelê, Só Pra Contrariar e Molejo, que venderiam milhões de CDs em todo o país. "Quando lançamos, fomos muito criticados. O samba de raiz não tinha guitarra, saxofone, teclado, violinos. Muita gente reclamou", diz Luiz Carlos, vocalista e líder do Raça Negra. "A gente também tentou mudar um pouco aquela coisa do samba, ligada a Bezerra da Silva, de meu barraco caiu, a coisa do boteco. A gente quis botar melodia, criar uma coisa romântica", explica.
Rótulo
O preço da autonomia foi a rotulação, por volta de 1995, do Raça Negra e dos outros grupos em um gênero específico: o pagode. "A imprensa resolveu denominar isso de pagode para poder diferenciar do samba tradicional. Até hoje isso continua, mas não sei de onde vem", diz o músico Leandro Lehart, que fez sucesso com o Art Popular. "Para as rádios e para o público em geral, pagode é Raça Negra, Art Popular, Sorriso Maroto. E samba é Fundo de Quintal, Cartola", diz Lehart. Para Luiz Carlos, o rótulo também era uma estratégia de marketing das gravadoras, que queriam vincular seus artistas ao que estava vendendo bem.
Mas a embalagem veio acompanhada de preconceito, de acordo com o pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco Felipe Trotta. "O estranhamento de parte da crítica, também na década de 1990, vem do fato de que os grupos não eram do Rio de Janeiro, mas da periferia de São Paulo. Teoricamente, não tinham legitimidade", diz Trotta, que acaba de publicar o livro O Samba e Suas Fronteiras: Pagode Romântico e Samba de Raiz nos Anos 1990, pela editora da UFRJ. "Para piorar, nenhum deles se preocupou em se filiar a uma tradição de samba, prestar tributos nem diretamente e nem através da própria obra. Isso colocou os grupos de pagode em uma posição de pouca relevância cultural", emenda.
"O samba sempre foi restritivo. Como símbolo da brasilidade, sempre foi contrário à guitarra, ao rock sempre o inimigo de todos os sambistas", diz o pesquisador. "Pela primeira vez, nos anos 90, o samba teve que lidar com um contra-gênero, uma oposição que estava reivindicando ser samba. A oposição sempre tinha sido externa: samba contra foxtrot nos anos 30, contra o jazz nos 40, contra rock nos anos 60 e 70, contra lambada nos anos 80. E, finalmente, o samba contra o próprio samba. Aí, surge a ideia que o que eles fazem é raiz, e os outros, pagode."
Legado
A palavra pagode não era novidade, e tinha usos diversos desde ligados à música caipira até a nordestina. No entanto, era conhecida, principalmente, como a reunião de sambistas que tocavam partido-alto nas quadras de escola, depois dos sambas-enredo. A forma é conhecida: refrão entoado em coro e versos cantados por uma voz principal. Músicos como Candeia e Martinho da Vila, já a partir dos anos 70, eram conhecidos como pagodeiros. A cantora Beth Carvalho, que integrou ao seu trabalho os músicos da escola de samba Cacique de Ramos de onde também surgiu o grupo Fundo de Quintal ajudou a popularizar o samba daquela época. Em meados dos anos 80, esses e outros sambistas, como Zeca Pagodinho, chegavam ao auge.
No entanto, esses artistas entrariam em um momento de pouca expressividade. É aí que o pagode romântico entra em cena e, de acordo com Trotta, beneficia a ambos em termos mercadológicos. "A forma diferente de lidar com gravadoras e televisão permitiu que o samba tivesse outra entrada no mercado, num momento que era delicado para o samba mais tradicional. O pagode surgiu com uma estética que trouxe legitimidade popular, menos improvisação e mais profissionalismo, mais parceria com grandes gravadoras. E isso balizou a entrada do samba no mercado", diz Trotta.
O sucesso de artistas como Zeca Pagodinho e Martinho da Vila acompanhou a explosão do pagode, que ajudou a quebrar paradigmas, de acordo com Leandro Lehart. "A gente conseguiu levar o samba e o pagode a lugares em que as pessoas torciam o nariz. E as pessoas começaram a se interessar pelos mais antigos. Começaram ouvindo Art Popular e passaram a se interessar também pelo Fundo de Quintal", diz.
Para Lehart, esses grupos levaram às rádios pop a música das periferias da época para concorrer com a música estrangeira. "Coisas que aconteciam fora do meio do samba faziam com que ele conversasse com outras estéticas. Se isso tirou um pouco da raiz do samba, se isso baixou a qualidade, não sei. Mas que o samba saísse dessa coisa mais puritana, dos guetos, e fosse tocado país afora, isso a gente conseguiu."



