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A banda Bad Religion é um dos grandes nomes da cena punk rock mundial | Divulgação/Seven Shows
A banda Bad Religion é um dos grandes nomes da cena punk rock mundial| Foto: Divulgação/Seven Shows

Perfil

• Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de março de 1937, em Porto Alegre.

• Cresceu no bairro do Bom Fim, dos imigrantes judeus, que compara a outras vizinhanças célebres, como o Lower East Side (Nova Iorque), o Marais (Paris), o Once (Buenos Aires) e o Bom Retiro (São Paulo).

• É médico e trabalha no sistema público de saúde.

• Entre os seus prêmios principais (o que não conta o vale-sapatos e o cheque sem fundo que ganhou nos primeiros anos como escritor), estão o Jabuti – no qual foi finalista três vezes: 1988, 1993 e 2000 –, o Casa de las Americas (1989), o Prêmio Pen Club do Brasil (1990) e o Prêmio José Lins do Rego (Academia Brasileira de Letras, 1998).

• Desde 2003, é integrante da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira de número 31, a mesma que foi do romancista mineiro Geraldo França de Lima.

• É autor de 75 livros (incluindo suas memórias recém-lançadas).

• Entre os seus contos mais importantes, estão "O Carnaval dos Animais" (1968), "A Balada do Falso Messias" (1976), "O Anão no Televisor" (1979), "O Olho Enigmático" (1986) e "A Orelha de Van Gogh" (1989).

• Entre os romances, alguns dos títulos mais conhecidos são O Centauro no Jardim (1980), Sonhos Tropicais (1992), A Majestade do Xingu (1997), A Mulher que Escreveu a Bíblia (1999) e Os Leopardos de Kafka (2000).

Uma existência permeada de literatura

Além de ter um título genial, O Texto, ou: a Vida – Uma Trajetória Literária é uma leitura fascinante.

A obra, de certa forma, reflete a condição de seu criador. Como a vida de Moacyr Scliar não pode ser dissociada da literatura, os episódios pessoais que narra são pontuados por textos que escreveu desde muito novo.

O resultado é incomum e dá ao leitor a impressão de estar no escritório de Scliar, fuçando em seus arquivos e ganhando comentários do próprio autor sobre aquilo que encontra no caminho.

Uma das lembranças mais antigas que o gaúcho tem de sua relação com a escrita é a frase escrita em um papel usado para enrolar o pão: "Quando nasci, correu pela vizinhança que eu me chamava Mico". Na seqüência, comenta com bom humor o ego inflado que se insinuava no garoto que desejava ter o seu nascimento celebrado na vizinhança.

Ao longo da narrativa, Scliar aborda também textos da vida adulta, remontando as circunstâncias em que escreveu O Centauro no Jardim e vários outros textos que marcaram sua carreira ou sua intimidade (ou ambos).

Ele chega até a tratar da polêmica envolvendo o escritor canadense Yann Martel que, em 2002, venceu o Prêmio Booker por A Vida de Pi, claramente inspirado no romance Max e os Felinos.

A história poderia render um processo por plágio, mas o brasileiro se satisfez com a "gratidão" demonstrada por Martel no prefácio do livro.

As memórias são muitas. Scliar fala da experiência com psicanálise, do choque de quase ter morrido em um acidente de carro, da Bíblia como inspiração (embora tenha origem judaica), de ser pai, médico e escritor. E sua voz permanece com leitor tempo depois de fechado o livro.

Moacyr Scliar não viveu uma experiência que o fulminasse com a idéia de ser escritor. Daquelas em que alguém é influenciado pela leitura de um livro ao ponto de gritar "quero escrever ficção!". Nada disso.

Até onde consegue lembrar, Scliar escrevia. Na mesa da cozinha, no papel que envolvia o pão e em guardanapos. Narrar, para ele, era uma forma de sustentar uma ligação com o pais – eles também contavam histórias para o filho desde sempre.

Porém, o médico gaúcho viveu situações em que uma outra idéia, bem menos inspiradora, o mobilizava: desistir de escrever. Isso aconteceu depois de seu primeiro livro, uma coletânea de contos produzidos quando ainda era um estudante universitário, com o título "medonho" (nas palavras do próprio autor) Histórias de um Médico em Formação.

"Relendo o livro, eu me dava conta dos problemas, das imperfeições. Chateado, achava que não era escritor coisa alguma", afirma em O Texto, ou: a Vida – Uma Trajetória Literária, sua 75.ª obra, misto de memórias e antologia que acaba de sair pela Bertrand Brasil.

Na entrevista a seguir, Scliar, 70 anos, não concorda com idéia de que "recordar é viver" e dá às palavras uma serventia sem igual.

Caderno G – Depois de terminar o livro e de refazer esse percurso de sua vida, procurando contextualizar seus escritos com o momento que vivia, o senhor teve a chance de compreender algo que antes não estava claro ou de perceber algo que era obscuro em relação a sua trajetória?Moacyr Scliar – Eu acho que a grande percepção que eu tive, no fundo, foi essa coisa de como o texto e a vida são intercambiáveis. A vida explica o texto e vice-versa. É uma coisa sobre a qual vale a pena pensar. Kafka, por exemplo, era ambivalente sobre aquilo que escrevia. Ele dizia que era um absurdo trocar a vida por palavras. Uma pessoa normal vive, não escreve. Escrever, portanto, seria uma espécie de perturbação emocional ou espiritual. Eu pude constatar que não é assim. Viver e escrever são sinônimos. Enquanto a pessoa está sentada, escrevendo, de alguma forma, ela está vivendo e, muitas vezes, vivendo intensamente. Tudo depende de uma auto-aceitação, de gostar daquilo que a gente está fazendo. Diferente do Kafka, que no seu leito de morte mandou queimar tudo o que tinha escrito de inédito, eu não recuso nada do que fiz. Não só na literatura, mas em tudo o que fiz. Essa auto-reconciliação foi um efeito inesperado, mas gratificante.

A sua colaboração semanal com a Folha de S.Paulo, onde escreve contos baseados em notícias do jornal, é um grande desafio, não?É um conto que parte de um tema pré-estabelecido, um tema proposto. Isso contraria a idéia dos escritores de criar a partir de temas próprios, mas criar a partir de uma notícia de jornal envolve um desafio muito interessante e que não fui eu quem descobriu. Aí mesmo, em Curitiba, tu tens o Dalton Trevisan. Pelo que eu sei, ele guardava notícias de jornal e sobre elas escrevia muitos contos. A gente se dá conta que atrás de uma notícia ou de outros acontecimentos, existe uma história pedindo para ser contada.

Há o exemplo do Valêncio Xavier, que foi ao extremo de usar o recorte de jornal para contar a história, como em O Mez da Grippe.Eu sou fã da obra do Valêncio. Acho que ele é o grande exemplo no Brasil dessa associação entre realidade e ficção. Um dos que mais trabalhou essa interface e trabalhou com um êxito notável.

Pelo modo como narra suas memórias, fiquei com a impressão de que sua formação foi muito espontânea, como passar da infância à adolescência.Surgiu, realmente, de uma forma imperceptível. Quando eu vi, estava escrevendo. Eu posso, sim, claramente identificar, no menininho que eu fui, os fatores que me levaram a escrever. Primeiro, uma imaginação extremamente fértil. Até hoje me surpreendem os textos que escrevi quando era criança. Em segundo lugar, essa paixão por histórias que tem um conteúdo afetivo porque meus pais eram contadores de histórias. Quando eu contava histórias, estava fazendo o que eles faziam, estava dando continuidade a eles. Outra coisa, ligada pela influência materna, era a paixão pela leitura. Eu era um grande leitor. Os livros, para mim, eram a porta para o entendimento do mundo. Entender a vida significava ler e aprender com os autores que eu lia.

Um episódio curioso de O Texto, ou: a Vida é quando relata o prazer que experimentou ao ser elogiado pelo crítico Wilson Martins.Ele era e é uma lenda-viva. Para ele, não deve ter tido significação muito grande. Ele era um grande crítico literário, escrevendo para um grande jornal – O Estado de S.Paulo – que pegou um livrinho publicado em Porto Alegre com uma tiragem reduzida. Tu, como jornalista, ou eu, poderias pensar "não vale a pena mencionar isso aí. As pessoas não vão nem ter acesso". O fato de ele ter tido essa grandeza e essa generosidade foi um estímulo inimaginável.

O senhor costuma reler suas obras?Não. A não ser às vezes quando me pedem para escolher o trecho de tal e qual livro, então releio. É uma experiência sempre curiosa. Livros são coisas que pertencem a certas épocas da vida da gente. É como voltar para outro tempo. Eu me dou conta, muitas vezes, de que não sou mais aquela pessoa que escreveu aquele livro. Isso é inevitável e causa uma certa nostalgia, um sentimento de que o tempo passou. E eu não sou muito de olhar para trás. Eu não parto muito da tese que recordar é viver. Eu acho que viver é viver. Recordar, muitas vezes, é necessário e pode ser também prazeroso, mas viver para recordar é uma coisa que, a essa altura da minha vida, eu não recomendaria a ninguém. Eu acho que é muito ruim uma pessoa que chega à sua maturidade e fica olhando o passado. É pior ainda quando essa pessoa diz "antigamente é que era bom". Aí é o cúmulo do desastre. Mesmo que o futuro da pessoa seja reduzido pela sua expectativa de vida, ela deve viver o presente e pensar no futuro.

O senhor apresenta uma definição perfeita: "Escrever é reescrever". A partir de sua experiência, o sr. poderia citar qual é o maior equívoco que já ouviu acerca da vida de escritor?O maior equívoco é pensar que o escritor detém um poder mágico, que é um mago das palavras, que faz um texto nascer perfeito. Isso, às vezes, até acontece, mas não é a regra. Como diz o Drummond, o escritor luta com as palavras. As palavras se oferecem para pular dentro do texto e ele tem que fazer uma seleção. Isso é um componente indispensável do processo de criação literária, que tende a ser minimizado por jovens escritores. É aquela idéia "se eu botei uma coisa no papel, ela tem que ser publicada". Um esforço que eu faço quando jovens escritores me pedem um conselho, é nesse sentido: que eles não tenham pressa, que reelaborem o que escreveram, que deixem passar algum tempo para poder avaliar melhor o que fizeram. O que equivale, ao fim e ao cabo, dominar nossa própria ansiedade.

No livro, o senhor diz: "Para isto servem as palavras, para estabelecer laços entre pessoas – e para criar beleza". Esse é seu objetivo com o ato de escrever – ligar pessoas e criar beleza?É. E tu notas que a ordem, na minha frase, tem um significado grande. Primeiro, os laços afetivos. Segundo, criar beleza. Quando tu chegas aos 70 anos, se dá conta da importância dos outros na tua vida. Tu existes na medida em que contrai laços afetivos com as outras pessoas. A existência solitária, de eremita, é uma semi-vida. Mesmo que o escritor pareça ser uma pessoa isolada. Quando ele está escrevendo, na realidade, está estabelecendo laços com pessoas. Mesmo que não estejam perto dele, mesmo que não as veja e sequer as conheça. A conexão entre seres humanos é fundamental para nossa existência.

Serviço: O Texto, ou: a Vida – Uma Trajetória Literária, de Moacyr Scliar (Bertrand Brasil, 272 págs., R$ 39).

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