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Faichecleres: banda agora conta com um novo baixista, Ricardo Junior (primeiro à direita). | Divulgação
Faichecleres: banda agora conta com um novo baixista, Ricardo Junior (primeiro à direita).| Foto: Divulgação

Estou esperando pelo cara. Lou Reed está terminando seu almoço, composto de folhas verdes e suco de fruta, em um restaurante das altas rodas de Manhattan. Eu cheguei ao local pontualmente, mas Reed não está disposto a se apressar e pedem para que eu o espere, por mais de meia hora, perto do bar. Eu não me importo, mas isso me dá muito mais tempo para contemplar meu destino.

Reed é o entrevistado mais irritado que existe na atualidade. Ele tem "mascado e cuspido" jornalistas por quase 30 anos. Dois deles, do Guardian, que ousaram se arriscar nessa aventura, têm contos de horror para relatar. Reed reduziu um deles a lágrimas quando ficou respondendo todas as perguntas com monossílabos e tentava fugir da entrevista. A outra jornalista ficou tão transtornada com o comportamento do músico, que virou a mesa e o deixou falando sozinho.

Quando eu fui finalmente conduzido à mesa e sentei de frente a ele, Reed me deu um olhar examinador. Ele virou as lentes escuras dos óculos para cima, e pude ver em seu rosto bem vivido um quê de cautela e suspeita. Eu nem imagino como ele vai reagir quando eu começar com a frase bajuladora, mas real, de que eu era fã da música dele quando era adolescente, e ainda sou.

Será que essa pergunta causará uma emanação de bile? Um risinho sarcástico? Na verdade, ele simplesmente diz "obrigado". Só pode ser um truque, eu penso comigo mesmo. Mas, conforme a entrevista se desenvolve, ele continua alegre e expansivo, e eu acabo curtindo o que enganou a tantos entrevistadores – uma conversa com Lou Reed. Talvez o ambiente tenha ajudado.

Estamos sentados ao ar livre numa rua tranqüila do Village. A luz colorida do sol da primavera iluminando a toalha da mesa de uma maneira que alegra a alma, acaba invocando a alegria lânguida de um dos sucessos românticos de Reed, "Perfect Day". Talvez, tudo esteja fluindo tão bem por estarmos falando da melhor coisa que aconteceu a ele em vários anos: sua turnê atual, na qual ele leva para o palco o álbum gravado em 1973, em shows por toda a Europa, incluindo o Reino Unido e a cidade que deu nome ao disco, Berlim. Como um fenômeno musical, a turnê Berlin promete ser espetacular.

Reed vai ser acompanhado por uma orquestra de 30 membros e um complemento ao rock eletrônico formado por trompetes, trombone, piano e um violoncelo. Além disso, 12 coristas, do New London Children’s Choir, com idades entre 12 e 17 anos, vão estar no palco toda noite e participar em conjunto com a voz espirituosa de Sharon Jones – Antony Hegarty de Antony and the Johnsons apareceu em outras performances, mas está comprometido com outros projetos agora.

A escala da produção é apenas uma pequena parte dos porquês que Berlin é tão importante. Para Reed, é muito mais do que um mero show: é uma catarse. Ele marca a resolução de 34 anos de sofrimento, que começaram no dia que o álbum Berlin foi lançado em vinil pela primeira vez.

De acordo com a visão de Reed, o álbum foi e ainda é sua obra-prima. Ele o escreveu um ano após Transformer, seu segundo álbum-solo e que acabou o empurrando para o estrelato. Trans-former, com o toque popular do produtor David Bowie, combinou melodias atraentes com letras irritáveis, povoadas de travestis, sadomasoquistas e personagens da fábrica de Andy Warhol, tais como Candy Darling, Holly Woodlawn e Sugar Plum Fairy. O single "Walk on the Wild Side" virou o hino, nos anos 70, para a parte mais ao sul de Manhattan, um local que tinha o céu tão aberto de onde se podia contemplar a Lua. Muito diferente do ambiente cinzento e cheio de prédios e barulho que se tem hoje. A música fez um sucesso enorme; muitos críticos do rock, e certamente a sua gravadora, RCA, esperavam que Reed fosse construir sua carreira com um álbum comercial que cimentasse sua reputação como um megastar pop. Mas ele escolheu, conscientemente e por vontade própria, fazer justamente o oposto. Ele se aventurou pelo seu lado selvagem, seu lado negro, e Berlin foi o resultado: a história de um viciado violento e sua namorada prostituta. Não exatamente uma parada de sucesso.

Reed disse aos fãs na época que o álbum iria "destruí-los totalmente. Este álbum vai mostrá-los que eu não estou brincando". Enquanto nos deliciamos com a luz do sol em West Village, ele me disse que sua idéia era usar a cidade dividida de Berlim – que até então ele não tinha visitado – como metáfora à discórdia humana. Ele queria brincar com o conceito como se tivesse pego uma peça, ou romance, e a colocado em uma música. "Estou pensando em algo como (as peças teatrais) Um Bonde Chamado Desejo ou Morte de um Caixeiro Viajante. Ou romances que estava lendo como Ginsberg, Burroughs, Selby".Ou ainda: "O que acontece se eu colocar uma bateria e um pouco de música ali? O que acontece?"

O que acontece é que você faz um álbum que considera o auge de sua carreira artística só para ver o resto do mundo lhe criticar. A RCA ficou tão chocada com Berlin que ameaçou, a princípio, não lançá-lo e fazer do álbum duplo um single, eliminando assim 14 minutos do disco.

Lontra agonizante

Os críticos, também, deram seus "pontapés". Um comparou os vocais nada envernizados de Reed ao "uivo quente de uma lontra agonizante". A revista Rolling Stone disse que esta era a "última oportunidade da ex-carreira promissora de Reed. Adeus, Lou".

A tragédia foi que, tanto Reed quanto seu produtor, Bob Ezrin, tinham posto esperanças muito altas em Berlin. Eles se referiam ao álbum como "um filme para a mente" ou "filme para os ouvidos" e estavam se divertindo com a possibilidade de um show até então. "Mais do que me divertir com as possibilidades", ele diz agora, "eu estava planejando de verdade: como seria o hotel, o clube, quantos andares, coisas do gênero. Mas eles não gostaram da idéia. Não havia maneira de se conseguir apoio. Ponto final. Às vezes você ganha, outras perde, exatamente como no futebol." O show finalmente ganhou vida – 34 anos mais tarde.

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