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Unir ranzinzice e humor é tão paradoxal quanto fumar sabendo de todas as porcarias contidas em um cigarro. As duas atitudes definem à perfeição o Kurt Vonnegut presente em Um Homem sem Pátria (Tradução de Roberto Muggiati. Record, 160 págs., R$ 29,90). Apresentados como ensaios, os textos mais parecem crônicas, tanto pelo tamanho quanto pelo descompromisso na abordagem de temas como a política americana e a literatura de Shakespeare – e vários são escritos em primeira pessoa ou fazem do autor, personagem.

Parte do que aparece no livro – o primeiro de Vonnegut em seis anos – foi publicado pelo jornal In These Times, conhecido como "esquerdista" por bancar críticas contundentes ao modo como os EUA lidam com questões comerciais, sociais e ambientais. "O humor é uma maneira de mostrar como a vida pode ser horrorosa, de se proteger. No fim, você simplesmente fica cansado demais, e as notícias são muito ruins, e o humor não funciona mais", escreve Vonnegut, autor de Matadouro 5 e Destinos Piores que a Morte. Fã de figuras fundadoras da identidade americana – o escritor Mark Twain e o presidente Abraham Lincoln entre elas –, lamenta ter durado 82 anos (na época do texto. Hoje ele tem 83).

"Desde os 12 anos de idade, nunca fumei outra coisa, um atrás do outro, a não ser Pall Malls sem filtro. E já há muitos anos, no próprio maço de cigarros, a Brown e Williamson vem prometendo me matar. Mas estou com 82 anos. Muito obrigado seus ratos sujo. A última coisa que eu queria era estar vivo quando os três homens mais poderosos do planeta se chamam Bush, Dick e Colon." A afirmação, que já serviu de piada para o comediante Chris Rock, cita os nomes do presidente americano (que significa "moita" e é gíria para a genitália feminina), do vice (idem para a masculina) e do então secretário de estado Colin Powell (colon significa "intestino").

A maior besteira dita por Vonnegut no livro é que ele talvez não seja mais engraçado. Pelo parágrafo anterior, dá para desconfiar de modéstia. "Pode ser que eu tenha me tornado um tanto ranzinza por ter visto tantas coisas que me chocaram, e que não possa mais lidar com elas em termos de risadas." Ele pode, mas o sorriso é às vezes amarelo, meio constrangido – o que ocorre quando lista as barbaridades cometidas por Bush. Aliás, o seu alvo número um, seguido de perto pelo petróleo.

"Caso não tenham notado, (os americanos) somos hoje temidos e odiados no mundo inteiro como os nazistas já foram um dia. E por boas razões. (...) Por isso sou um homem sem pátria, exceto para os bibliotecários e para um jornal de Chicago chamado In These Times." Fosse uma luta de boxe entre o escritor e o político, o nocaute viria na página 98, quando o primeiro compara o segundo a Adolf Hitler, ambos "cristãos". Para Vonnegut, o presidente é uma personalidade psicopática, que define "termo médico para pessoas espertas e com personalidade que não possuem nenhuma consciência".

Que é um livro?

Quando não está lamentando a maneira como os seres humanos esculhambam a Terra, Vonnegut fala sobre coisas que o interessam. Ele baixa a guarda para assumir o amor pela música ("Ela faz praticamente todo mundo gostar mais da vida do que gostaria sem ela"), a literatura e o convívio com outras pessoas.

Ele admite odiar "aparatos novidadeiros" e lamenta a proliferação de comunidades eletrônicas que "não constroem nada", pois vê o ser humano como um "animal dançante" e dedica páginas para descrever os pequenos prazeres – como o diálogo com a moça do balcão – ligados à tarefa de sair para comprar um envelope no qual pretende enviar seus manuscritos para uma datilógrafa que mora em Woodstock, no estado de Nova Iorque. Consciente de seus hábitos um tanto anacrônicos, acha tudo muito divertido: escrever a mão, pagar uma datilógrafa, comprar selos e largar o pacote em uma caixa do correio.

Páginas adiante, o autor dá uma definição essencial e muito bem sacado de livro, "um arranjo de 26 símbolos fonéticos, dez algarismos e cerca de oito sinais de pontuação, e as pessoas podem passar os olhos sobre estes arranjos e visionar a erupção do monte Vesúvio ou a Batalha de Waterloo".

No fim, se auto-intitular "um homem sem pátria" é mais um dos paradoxos de Vonnegut. Por se indignar com os rumos do seu país e do mundo, ele assume a condição de cidadão dos EUA – e de habitante da Terra – talvez mais do que gostaria.

Ouvir de um senhor octogenário que "existem situações tão sem esperança que nenhum alívio é imaginável" não é nada animador. Mas pelo menos é verdadeiro.

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