
Quantas memórias em uma xícara de chá! O trecho de No Caminho de Swann, de Marcel Proust, em que o protagonista molha um biscoito do tipo petite madeleine na bebida e o gosto resultante o faz lembrar de toda a infância rendeu na França a expressão une madeleine de Proust, usada por quem se refere a um catalisador da memória. Até um desenho animado, Ratatouille, faz menção a esse fenômeno na "cena mais proustiana do cinema", na opinião da professora da Aliança Francesa de Curitiba Viviane Ribeiro: quando o crítico gastronômico Anton Ego dá a primeira colherada no prato que dá nome ao filme e revive um fim de tarde melancólico e caloroso na cozinha da mãe.
Para aqueles apressados, a situação com o biscoitinho, no quarto onde a tia vivia reclusa, acontece ao pequeno protagonista no fim do primeiro capítulo de "Combray", primeira parte do livro.
Fechando a questão "cultura popular sobre Proust", outra expressão francesa que leva seu nome é o questionnaire de Proust, usado para listas em que se pede a alguém que indique seus favoritos entre cantores, pratos etc: o escritor respondeu a uma espécie de "caderno de confidências" que circulava nos jantares da elite parisiense do início do século 20, acrescentando, inclusive, questões que julgava interessantes.
A importância de No Caminho de Swann, que acaba de completar cem anos, vai, obviamente, muito além de suas citações intermidiáticas. Mas é inegável que muitos que se dispõem a enfrentar as 500 páginas deste que é apenas o primeiro da série de sete livros que compõem Em Busca do Tempo Perdido desejam chegar logo ao afamado trecho do doce molhado no chá para depois respirar aliviados e degustar o incansável fluxo de consciência.
Tempo
A reminiscência livre, própria da "memória involuntária" (leia mais no texto da página ao lado), fala muito daquilo que pode ser considerado um dos principais temas do livro e de toda a série: a passagem do tempo. Tanto que, para os mais jovens, uma ótima desculpa para ainda não tê-la atacado é a indicação de que "Proust só deve ser lido depois dos 40", quando se começa a entender o que é o tempo de vida e sua escorregadia passagem.
Outro motivo que afasta muitos leitores é o próprio estigma do grande escritor. "Inventor do romance moderno" e "o romancista do século 20" são algumas das alcunhas conferidas a Proust.
Seu lugar no panteão francês e internacional tem relação com o uso que faz da teoria do inconsciente, que Freud elaborava por aquela época (Proust escreve a série a partir de 1909, enquanto A Interpretação dos Sonhos fora publicada em 1900).
"Ele apresenta uma teoria de que não podemos ter uma visão do real porque enxergamos de forma subjetiva e fragmentada. Somente a reconstrução pela memória permitiria ver o todo e isso seria encontrar o tempo perdido", sugere a professora Viviane Ribeiro.
De mãos dadas com os temas da memória e do inconsciente está a linguagem inovadora do livro. "Ao contrário da tradição romanesca, o livro não expõe uma sucessão de acontecimentos e fatos registrados em uma narrativa responsável por criar um interesse em torno deles. A obra de Proust, desde o primeiro volume faz, a partir de um certo grau de introspecção, uma bela pesquisa sobre o homem e sua memória, e sobre a literatura propriamente dita não é um metarromance, mas possibilita uma leitura também nessa direção", sugere a professora de Literatura da UFPR Sandra Mara Stroparo.
A angústia do artista em busca de um tema sobre o qual escrever e de autoconfiança para impor sua presença no mundo da criação é basilar na formação dessa nova linguagem. Conforme lembra o crítico Antoine Compagnon no prefácio das edições Gallimard, de 1988, toda a série é circular: no último livro, revela-se que a angústia criativa do narrador-protagonista irá se redimir na escritura, justamente, da obra que se acaba de ler. (Desculpe o spoiler, mas são poucos aqueles que chegam ao final do catatau.) "Como o herói se torna escritor: esse é o fio secreto, o eixo do romance até O Tempo Redescoberto [sétimo volume da série], em que o herói, graças a uma série de êxtases que lhe restituem o tempo perdido, compreende que a verdadeira vida, a única redenção, está na arte."
Uma outra relação estabelecida pelo livro e voltando ao diálogo entre as artes é com a pintura impressionista. "Ele vai construindo a frase com pequenas pinceladas", compara Viviane.
Os cem anos de Em Busca do Tempo Perdido
Agência O Globo
A data, pelo menos no Brasil, passou sem grandes celebrações. O dia 13 de novembro marcou os 100 anos do lançamento de No Caminho de Swann, o livro que inaugurou uma das obras mais importantes e menos lidas da literatura mundial. Não porque os temas de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, tenham envelhecido, mas porque pouca gente se dispõe a atravessar seus sete volumes quase quatro mil páginas na edição brasileira, da Globo Livros. Mesmo sem festa, o romance de Proust vive um momento importante no país. A Globo Livros terminou, há poucos meses, a reedição da obra, com traduções de Mario Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Além das novas edições no mercado, No Caminho de Swann vai ganhar mais uma versão brasileira, traduzida pelo jornalista Mario Sergio Conti. A Companhia das Letras planeja lançá-la no ano que vem. Lá fora, a Sothebys leiloou, nesta semana, por 145 mil euros, a carta em que André Gide, um dos quatro editores que rejeitaram o manuscrito de Proust na época, se diz arrependido do erro.
Trama
Nunca é fácil resumir sobre o que o livro trata. Grosso modo, Em Busca do Tempo Perdido narra a vida de Marcel o protagonista, cujo nome só é citado duas vezes no romance em seu percurso para se tornar escritor. Ao longo da história, Proust apresenta reflexões sobre o amor, a arte, a passagem do tempo, a homossexualidade. Uma de suas ideias mais originais, porém, é a distinção entre memória voluntária e involuntária. Para Proust, não é possível acessar o próprio passado por meio da inteligência. Só a memória involuntária, disparada por algum elemento, é capaz de recuperá-lo. Daí a cena clássica da madeleine. Ao mergulhar o doce numa xícara de chá e prová-lo, o protagonista relembra toda a sua infância na cidade fictícia de Combray.
"O romance tem uma energia rejuvenescedora. Proust nos revela muito sobre a experiência humana. Apesar de ter 100 anos, é uma obra muito moderna. Quem lê sempre reconhece, nos personagens, pessoas do seu convívio ou a si mesmo", diz William C. Carter, autor de Marcel Proust A Life, definido pelo crítico literário Harold Bloom como o "biógrafo definitivo" do escritor francês.
O biógrafo lembra que Proust nunca precisou trabalhar, porque vinha de família rica: seu pai era professor universitário, e a família de sua mãe era de banqueiros. Depois da morte dos pais, acometido pela asma, Proust se trancou no apartamento da família, onde escreveu o grande clássico. As paredes eram cobertas de cortiça, para evitar a propagação de ruídos.
A fama de "obra difícil", como lembra a escritora Lydia Davis, vencedora do Man Booker International deste ano e tradutora de No Caminho de Swann (leia entrevista), explica a relutância de alguns leitores em embarcar em Proust. Um dos motivos vem do fato de ele ter escrito períodos longos, embora a fama nem sempre seja justificada. Em 1975, no livro La Phrase de Proust, o crítico Jean Milly investigou a musicalidade da frase proustiana, apontando ritmos, aliterações, número de sílabas métricas etc. E também contou as frases de No Caminho de Swann, descobrindo que quase 40% delas são curtas, ocupando de uma a cinco linhas. Menos de um quarto têm dez linhas ou mais. Em A Prisioneira, porém, como diz Étienne Brunet em Le Vocabulaire de Proust (1983), há um período com 400 palavras o equivalente a quatro metros de comprimento, se alinhadas.
"O problema de Proust, para muitas outras pessoas, não é o tamanho dos períodos, mas a sintaxe, a mudança constante de direção da frase. Cada vez que ela muda, você deixa um pensamento em suspenso, o que exige concentração. Esse exercício de pensamento se tornou incompatível com a fragmentação do século 21", diz o filósofo e ensaísta Francisco Bosco, que tentou ler os livros três vezes antes de engatar na leitura.
As editoras que Proust procurou em 1913 também acharam difícil. Quatro recusaram o original e entraram para a lista folclórica dos editores que não perceberam o valor de um clássico. Ao primeiro deles, Proust propôs um livro em dois volumes: O Tempo Perdido (depois rebatizado de No Caminho de Swann) e O Tempo Reencontrado. Ambos receberiam o título de As Intermitências do Coração. Depois, o escritor procurou a Nouvelle Revue Française (NRF) hoje Gallimard. Deu na mesma. André Gide, um dos editores, diz na carta que vai a leilão que a rejeição seria um dos seus "mais amargos arrependimentos". Proust só conseguiu publicar na quinta editora (Grasset) e, mesmo assim, só depois de bancar a impressão e prometer dividir o lucro das vendas.
Edição
Para além da curiosidade, o episódio ajuda a lembrar que Proust escreveu o primeiro e o último volumes antes. Só depois foi incluindo os demais. Ele reescrevia e anotava sobre seus originais obsessivamente. Deixou 75 cadernos, que um grupo de pesquisadores franceses, japoneses e brasileiros se esforça, há dez anos, para transcrever e publicar. Prova de que Em Busca do Tempo Perdido é uma obra inacabada. Ninguém sabe o que Proust teria mudado se estivesse vivo quando os três últimos volumes (A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Redescoberto) foram publicados, respectivamente em 1923, 1925 e 1927.
Não à toa, na década de 1970 os sete romances foram revistos, a partir de manuscritos do escritor, que comparava seu ciclo de romances a uma catedral gótica, erguida até os céus. Diante dessas mudanças, a Globo Livros precisou reeditar a obra com base na edição de 1970. A tradução de No Caminho de Swann, por exemplo, era de 1948, antes de a edição definitiva ser estabelecida na França. Para realizar o trabalho, foi chamado Guilherme Ignácio da Silva, o primeiro brasileiro a transcrever um dos cadernos de Proust, em 1998.
"Uma das melhores dicas para quem quer ler o livro vem de André Gide, que aconselha a leitura em voz alta. Na faculdade, fazemos exercícios de leitura em voz alta do original e na tradução brasileira", diz Da Silva, que também é professor de língua e literatura francesas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Que a Recherche, como dizem os franceses, ainda seja discutida, é prova de um dos pensamentos de Proust. Só pela imaginação e pela lembrança o passado ganha significado. Para ele, que morreu em 1922, aos 51 anos, ao recriar a realidade por meio de sua visão particular, o artista consegue vencer o tempo.







