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 | Ilustração: Osvalter Urbinati
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati

Questionário de Proust

O autor adaptou uma lista de perguntas pessoais inglesa, acrescentou alguns itens e deixou suas respostas para a posteridade, por volta de 1890:

Minha virtude preferida:

A necessidade de ser amado. Para ser mais preciso, de ser acariciado e mimado, bem mais do que ser admirado.

A qualidade que prefiro num homem:

Charme feminino.

A qualidade que prefiro numa mulher:

Virtudes de homem e a franqueza no ambiente entre camaradas.

Meu maior defeito:

Não saber, não poder "querer".Minha ocupação preferida:

Amar. Meu sonho de felicidade:

Temo que ele não seja tão elevado, não ouse dizê-lo, tenho medo de destrui-lo ao pronunciar o que é.

Qual seria minha maior tristeza?

Não ter conhecido minha mãe e minha avó.

Quem eu gostaria de ser:

Eu mesmo, como as pessoas que eu admiro desejariam que eu fosse.

Onde eu gostaria de viver:

Onde algumas coisas que eu gostaria se realizassem como por encanto e onde os afetos fossem sempre compartilhados.

A cor e a flor que prefiro:

A beleza não está nas cores, mas na sua harmonia.

Meu pássaro preferido:

A andorinha. Autores favoritos, na prosa:

Hoje, Anatole France e Pierre Loti.

Poetas favoritos:

Baudelaire e Alfred de Vigny.

Heróis da ficção:

Hamlet.

Heroínas da ficção:

Berenice.

Compositores favoritos:

Beethoven, Wagner, Schumann.

Pintores favoritos:

Leonardo da Vinci, Rembrandt.

Meus heróis na vida real:

Senhores Darlu e Boutroux.

Minhas heroínas na história:

Cleópatra.

O que eu mais odeio:

Aquilo que há de mal em mim.

Personagens da história que mais odeio:

Não sou tão instruído assim.

O feito militar que eu mais admiro:

Meu voluntariado!

O talento natural que gostaria de ter:

Vontade, e sedução.

Como eu gostaria de morrer:

Melhor – e amado.

Estado de espírito no momento:

Enfado de ter pensado em mim mesmo para responder a essas questões.

Que defeitos você mais tolera?

Aqueles que inspiram em mim mais indulgência. Aqueles que eu compreendo.

Seu mote preferido:

Tenho medo que ele me traga azar.

Tradução: Helena Carnieri.

"Você não pode ser impaciente ao ler Proust"

Por que ler Proust hoje?

Porque é eterno. Ele mostra todo tipo de relação humana. São sentimentos que sempre existirão, como o ciúme, o amor e a dor. Proust explora todos os personagens de forma muito profunda. Mais profunda do que qualquer outro autor que já existiu. Ao lado dessa dimensão humana eterna, está a Paris do fim do século 19. É como um descanso da nossa vida diária ser transportado para lá.

Na sua opinião, há algum tema de Proust com mais apelo para os leitores contemporâneos?

Um dos mais fortes é a possibilidade de nos voltarmos ao nosso passado e vivê-lo mais uma vez. É uma experiência muito forte, pela qual acho que todos gostaríamos de passar, a fim de avaliar algum momento de nossas vidas. A experiência está na madeleine.

Proust é difícil para as novas gerações?

Sim. Ainda que a maioria de seus períodos seja curta, ele tem alguns enormes, cheios de orações subordinadas. Proust inicia um pensamento, insere outro, depois mais outro e, então, mais um. Só no final você chega à conclusão. Você não pode ser impaciente ao ler Proust.

Os seus contos, tão curtos, são quase o oposto dos de Proust. Traduzi-lo afetou sua escrita?

Eu fazia contos de um parágrafo ou uma página há algum tempo quando comecei a traduzi-lo. Mas, nessa época, resolvi me desafiar a escrever os contos mais curtos possíveis. Como se eu criasse uma barreira entre o meu estilo e o de Proust.

Algum conselho para quem quer começar os romances?

Não precisa de textos prévios. Não tenha medo de recomeçar. Eu recomecei Ulysses, de James Joyce, três vezes até conseguir ler.

Lydia Davis, escritora e tradutora de No Caminho de Swann

Agência O Globo

Adaptações

Proust é pop:

Quadrinhos

A editora Zahar publicou no Brasil uma adaptação de Em Busca do Tempo Perdido, também em sete volumes, feita pelo artista Stéphane Heut. Os quadrinhos foram elogiados na França como uma boa introdução à obra do escritor. Já a L&PM prepara, para junho de 2014, uma adaptação em mangá da obra de Proust.

Animação

Absorvido pela cultura pop, Proust virou referência até no desenho Ratatouille, da Pixar. A cena em que o crítico de gastronomia prova a comida e se lembra da infância é uma referência direta à passagem da madeleine.

Cinema

Em 1984, Volker Schlöndorff filmou Um Amor de Swann (foto), trecho do primeiro volume. Raúl Ruiz, em 1999, adaptou O Tempo Redescoberto, com Catherine Deneuve e Marcello Mazzarella. Em 2000, a belga Chantal Akerman filmou o sexto livro, A Fugitiva.

Quantas memórias em uma xícara de chá! O trecho de No Caminho de Swann, de Marcel Proust, em que o protagonista molha um biscoito do tipo petite madeleine na bebida e o gosto resultante o faz lembrar de toda a infância rendeu na França a expressão une madeleine de Proust, usada por quem se refere a um catalisador da memória. Até um desenho animado, Ratatouille, faz menção a esse fenômeno na "cena mais proustiana do cinema", na opinião da professora da Aliança Francesa de Curitiba Viviane Ribeiro: quando o crítico gastronômico Anton Ego dá a primeira colherada no prato que dá nome ao filme e revive um fim de tarde melancólico e caloroso na cozinha da mãe.

Para aqueles apressados, a situação com o biscoitinho, no quarto onde a tia vivia reclusa, acontece ao pequeno protagonista no fim do primeiro capítulo de "Combray", primeira parte do livro.

Fechando a questão "cultura popular sobre Proust", outra expressão francesa que leva seu nome é o ques­tionnaire de Proust, usado para listas em que se pede a alguém que indique seus favoritos entre cantores, pratos etc: o escritor respondeu a uma espécie de "caderno de confidências" que circulava nos jantares da elite parisiense do início do século 20, acrescentando, inclusive, questões que julgava interessantes.

A importância de No Caminho de Swann, que acaba de completar cem anos, vai, obviamente, muito além de suas citações intermidiáticas. Mas é inegável que muitos que se dispõem a enfrentar as 500 páginas deste que é apenas o primeiro da série de sete livros que compõem Em Busca do Tempo Perdido desejam chegar logo ao afamado trecho do doce molhado no chá – para depois respirar aliviados e degustar o incansável fluxo de consciência.

Tempo

A reminiscência livre, própria da "memória involuntária" (leia mais no texto da página ao lado), fala muito daquilo que pode ser considerado um dos principais temas do livro e de toda a série: a passagem do tempo. Tanto que, para os mais jovens, uma ótima desculpa para ainda não tê-la atacado é a indicação de que "Proust só deve ser lido depois dos 40", quando se começa a entender o que é o tempo de vida – e sua escorregadia passagem.

Outro motivo que afasta muitos leitores é o próprio estigma do grande escritor. "Inventor do romance moderno" e "o romancista do século 20" são algumas das alcunhas conferidas a Proust.

Seu lugar no panteão francês e internacional tem relação com o uso que faz da teoria do inconsciente, que Freud elaborava por aquela época (Proust escreve a série a partir de 1909, enquanto A Interpretação dos Sonhos fora publicada em 1900).

"Ele apresenta uma teoria de que não podemos ter uma visão do ‘real’ porque enxergamos de forma subjetiva e fragmentada. Somente a reconstrução pela memória permitiria ver o todo – e isso seria ‘encontrar o tempo perdido’", sugere a professora Viviane Ribeiro.

De mãos dadas com os temas da memória e do inconsciente está a linguagem inovadora do livro. "Ao contrário da tradição romanesca, o livro não expõe uma sucessão de acontecimentos e fatos registrados em uma narrativa responsável por criar um interesse em torno deles. A obra de Proust, desde o primeiro volume faz, a partir de um certo grau de introspecção, uma bela pesquisa sobre o homem e sua memória, e sobre a literatura propriamente dita — não é um metarromance, mas possibilita uma leitura também nessa direção", sugere a professora de Literatura da UFPR Sandra Mara Stroparo.

A angústia do artista em busca de um tema sobre o qual escrever e de autoconfiança para impor sua presença no mundo da criação é basilar na formação dessa nova linguagem. Conforme lembra o crítico Antoine Compagnon no prefácio das edições Gallimard, de 1988, toda a série é circular: no último livro, revela-se que a angústia criativa do narrador-protagonista irá se redimir na escritura, justamente, da obra que se acaba de ler. (Desculpe o spoiler, mas são poucos aqueles que chegam ao final do catatau.) "Como o herói se torna escritor: esse é o fio secreto, o eixo do romance até O Tempo Redescoberto [sétimo volume da série], em que o herói, graças a uma série de êxtases que lhe restituem o tempo perdido, compreende que a verdadeira vida, a única redenção, está na arte."

Uma outra relação estabelecida pelo livro – e voltando ao diálogo entre as artes – é com a pintura impressionista. "Ele vai construindo a frase com pequenas pinceladas", compara Viviane.

Os cem anos de Em Busca do Tempo Perdido

Agência O Globo

A data, pelo menos no Brasil, passou sem grandes celebrações. O dia 13 de novembro marcou os 100 anos do lançamento de No Caminho de Swann, o livro que inaugurou uma das obras mais importantes — e menos lidas — da literatura mundial. Não porque os temas de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, tenham envelhecido, mas porque pouca gente se dispõe a atravessar seus sete volumes — quase quatro mil páginas na edição brasileira, da Globo Livros. Mesmo sem festa, o romance de Proust vive um momento importante no país. A Globo Livros terminou, há poucos meses, a reedição da obra, com traduções de Mario Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Além das novas edições no mercado, No Caminho de Swann vai ganhar mais uma versão brasileira, traduzida pelo jornalista Mario Sergio Conti. A Companhia das Letras planeja lançá-la no ano que vem. Lá fora, a Sotheby’s leiloou, nesta semana, por 145 mil euros, a carta em que André Gide, um dos quatro editores que rejeitaram o manuscrito de Proust na época, se diz arrependido do erro.

Trama

Nunca é fácil resumir sobre o que o livro trata. Grosso modo, Em Busca do Tempo Perdido narra a vida de Marcel — o protagonista, cujo nome só é citado duas vezes no romance — em seu percurso para se tornar escritor. Ao longo da história, Proust apresenta reflexões sobre o amor, a arte, a passagem do tempo, a homossexualidade. Uma de suas ideias mais originais, porém, é a distinção entre memória voluntária e involuntária. Para Proust, não é possível acessar o próprio passado por meio da inteligência. Só a memória involuntária, disparada por algum elemento, é capaz de recuperá-lo. Daí a cena clássica da madeleine. Ao mergulhar o doce numa xícara de chá e prová-lo, o protagonista relembra toda a sua infância na cidade fictícia de Combray.

"O romance tem uma energia rejuvenescedora. Proust nos revela muito sobre a experiência humana. Apesar de ter 100 anos, é uma obra muito moderna. Quem lê sempre reconhece, nos personagens, pessoas do seu convívio ou a si mesmo", diz William C. Carter, autor de Marcel Proust – A Life, definido pelo crítico literário Harold Bloom como o "biógrafo definitivo" do escritor francês.

O biógrafo lembra que Proust nunca precisou trabalhar, porque vinha de família rica: seu pai era professor universitário, e a família de sua mãe era de banqueiros. Depois da morte dos pais, acometido pela asma, Proust se trancou no apartamento da família, onde escreveu o grande clássico. As paredes eram cobertas de cortiça, para evitar a propagação de ruídos.

A fama de "obra difícil", como lembra a escritora Lydia Davis, vencedora do Man Booker International deste ano e tradutora de No Caminho de Swann (leia entrevista), explica a relutância de alguns leitores em embarcar em Proust. Um dos motivos vem do fato de ele ter escrito períodos longos, embora a fama nem sempre seja justificada. Em 1975, no livro La Phrase de Proust, o crítico Jean Milly investigou a musicalidade da frase proustiana, apontando ritmos, aliterações, número de sílabas métricas etc. E também contou as frases de No Caminho de Swann, descobrindo que quase 40% delas são curtas, ocupando de uma a cinco linhas. Menos de um quarto têm dez linhas ou mais. Em A Prisioneira, porém, como diz Étienne Brunet em Le Vocabulaire de Proust (1983), há um período com 400 palavras – o equivalente a quatro metros de comprimento, se alinhadas.

"O problema de Proust, para muitas outras pessoas, não é o tamanho dos períodos, mas a sintaxe, a mudança constante de direção da frase. Cada vez que ela muda, você deixa um pensamento em suspenso, o que exige concentração. Esse exercício de pensamento se tornou incompatível com a fragmentação do século 21", diz o filósofo e ensaísta Francisco Bosco, que tentou ler os livros três vezes antes de engatar na leitura.

As editoras que Proust procurou em 1913 também acharam difícil. Quatro recusaram o original e entraram para a lista folclórica dos editores que não perceberam o valor de um clássico. Ao primeiro deles, Proust propôs um livro em dois volumes: O Tempo Perdido (depois rebatizado de No Caminho de Swann) e O Tempo Reencontrado. Ambos receberiam o título de As Intermitências do Coração. Depois, o escritor procurou a Nouvelle Revue Française (NRF) – hoje Gallimard. Deu na mesma. André Gide, um dos editores, diz na carta que vai a leilão que a rejeição seria um dos seus "mais amargos arrependimentos". Proust só conseguiu publicar na quinta editora (Grasset) — e, mesmo assim, só depois de bancar a impressão e prometer dividir o lucro das vendas.

Edição

Para além da curiosidade, o episódio ajuda a lembrar que Proust escreveu o primeiro e o último volumes antes. Só depois foi incluindo os demais. Ele reescrevia e anotava sobre seus originais obsessivamente. Deixou 75 cadernos, que um grupo de pesquisadores franceses, japoneses e brasileiros se esforça, há dez anos, para transcrever e publicar. Prova de que Em Busca do Tempo Perdido é uma obra inacabada. Ninguém sabe o que Proust teria mudado se estivesse vivo quando os três últimos volumes (A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Redescoberto) foram publicados, respectivamente em 1923, 1925 e 1927.

Não à toa, na década de 1970 os sete romances foram revistos, a partir de manuscritos do escritor, que comparava seu ciclo de romances a uma catedral gótica, erguida até os céus. Diante dessas mudanças, a Globo Livros precisou reeditar a obra — com base na edição de 1970. A tradução de No Caminho de Swann, por exemplo, era de 1948, antes de a edição definitiva ser estabelecida na França. Para realizar o trabalho, foi chamado Guilherme Ignácio da Silva, o primeiro brasileiro a transcrever um dos cadernos de Proust, em 1998.

"Uma das melhores dicas para quem quer ler o livro vem de André Gide, que aconselha a leitura em voz alta. Na faculdade, fazemos exercícios de leitura em voz alta do original e na tradução brasileira", diz Da Silva, que também é professor de língua e literatura francesas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Que a Recherche, como dizem os franceses, ainda seja discutida, é prova de um dos pensamentos de Proust. Só pela imaginação e pela lembrança o passado ganha significado. Para ele, que morreu em 1922, aos 51 anos, ao recriar a realidade por meio de sua visão particular, o artista consegue vencer o tempo.

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