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Arthur Tuoto, diretor do longa "Aquilo Que Fazemos Com as Nossas Desgraças" | Reprodução site Arthur Tuoto
Arthur Tuoto, diretor do longa "Aquilo Que Fazemos Com as Nossas Desgraças"| Foto: Reprodução site Arthur Tuoto

Pré-estreia de Brasil gera debate acalorado

Cenas das manifestações populares do ano passado também povoam o curta paranaense Brasil, de Aly Muritiba, exibido em pré-estreia nacional na noite de quarta-feira, pela Mostra Foco, a competitiva de curtas da 17.ª Mostra de Cinema de Tiradentes. A produção paranaense dá uma abordagem intimista ao momento político, colocando em confronto dois irmãos.

O filme suscitou o mais acalorado dos debates entre críticos, diretor e público realizados até então nesta edição da Mostra. Muritiba não veio ao interior de Minas, pois está filmando O Homem Que Matou a Minha Amada Morta. Foi representado por Andrew Knoll, ator de Brasil.

Escolhas narrativas e estéticas feitas pelo diretor foram questionadas no debate – caso do uso do preto e branco no curta. Muritiba até interviu pela internet para defender seu filme da acusação de "oportunista", feita pelo cineasta Lincoln Péricles (que apresentou o curta Jairboris na mesma sessão de Brasil).

"Fazer aquele filme foi minha forma de militar e refletir sobre o meu tempo. Não sou teórico, nem coxinha, nem tenho mais gana de levar bala de borracha no peito, então esta é minha forma de participar dos eventos que aconteceram no país. Dizer que é oportunista um filme que se insere no calor de um momento histórico é sandice", respondeu Muritiba, cujo longa A Gente também foi visto em Tiradentes neste ano.

  • Aquilo Que Fazemos com as Nossas Desgraças: apropriação
  • Andrew Knoll em cena de Brasil: confronto entre irmãos

Quatro dos sete filmes que competem neste ano ao prêmio principal da 17.ª Mostra de Cinema de Tiradentes são mineiros. Sinal da crescente produção em Belo Horizonte. Mas um paranaense se infiltrou na seleção da Mostra Aurora, feita pelo curador Cléber Eduardo, voltada a longas inéditos de jovens realizadores que arriscam em suas proposições estéticas.

Aquilo Que Fazemos com as Nossas Desgraças, primeiro longa do curitibano Arthur Tuoto, concorre aos R$ 50 mil que serão entregues ao melhor filme segundo o júri da crítica, na cerimônia de hoje à noite. A produção foi exibida no Cine-Tenda para o grande público no fim da tarde de quinta-feira. Uma experiência inédita e inesperada para o diretor. "Muda muita coisa do que eu pensava", disse Tuoto na saída da sessão. "O ambiente é outro, o som vem de outra forma, você descobre o filme só ali."

O impacto é maior porque ele concebeu e realizou o filme sozinho, na contramão dos processos colaborativos que dominam a Mostra Aurora neste ano. Tuoto precisou de um computador com conexão à internet e de um programa de edição, quase nada mais. Filmou apenas três planos. As demais imagens vêm de uma mediateca disponível a qualquer um na internet – 90% encontráveis no YouTube.

"Essa lógica da apropriação muitas vezes é vista como um olhar para o passado. Mas, se você pensar que o YouTube recebe cem horas de material por minuto, a grande maioria atual, é uma lógica do presente. Apontar para uma melhor imagem", diz Tuoto.

Sua base de trabalho é o áudio, que ele separa do contexto de origem e combina a imagens captadas por terceiros, num trabalho de sobreposição que busca novos significados – uma "reciclagem audiovisual".

Godard surge como a referência mais óbvia. Tanto pelo recurso à dissolução da imagem, ainda que sem a fragmentação ensaística que o francês pratica em obras recentes (a exemplo de Filme Socialismo), quanto pela inserção direta de uma série criada para a televisão francesa em 1979 por Godard e Anne-Marie Miéville, France/Tour/Détour/deux/Enfants. O áudio do programa, pouco conhecido, é o elemento condutor de Aquilo Que Fazemos com as Nossas Desgraças.

Nesse material, Godard e Miéville fazem perguntas subjetivas e retóricas sobre o Estado, a política, a economia e a linguagem a duas crianças. E ouvem respostas inocentes. Tuoto escolhe trechos de uma narração infantilizada sobre monstros, numa alegoria aos adultos. "Eles vão descrevendo de uma forma meio didática, meio lúdica, como seria a vida desses monstros e, invariavelmente, geram uma crítica à civilização."

Provocador

Iconoclasta "por provocação", Tuoto contraria as expectativas do público e interrompe a saturação de imagens típica do mundo contemporâneo. Longos momentos de tela preta ou ocupada por um texto-legenda sucedem imagens em baixa resolução e vídeos de Britney Spears ou das Pussy Riot. Fica evidente a articulação entre um pensamento sobre a política e a economia capitalista, e a política e a economia da imagem.

"O Estado usa da imagem para controlar, mas o vandalismo, o terrorismo e arte também usam da imagem para desestabilizar esse sistema", diz Tuoto. O conteúdo audiovisual amador tem o efeito de uma violação social, seja da privacidade ou da memória – "essa sensação cada vez mais comum de que uma experiência só é completa quando existe o registro da imagem", sugere o diretor.

A relação com as manifestações populares do ano passado se estabelece sem que se faça uma aproximação mais direta com a cultura brasileira. Para Tuoto, a intenção é atingir um efeito universal. "A truculência policial aqui é a mesma da Ucrânia, que é a mesma na Rússia, que é a mesma no mundo inteiro. Eu não queria me aproximar nem de um território e nem de um tempo para definir problemáticas universais que existem e provavelmente vão continuar existindo".

O filme é "independente até o talo", até por falta de opção. "O Paraná não lança um edital de cultura voltado ao audiovisual há mais de um ano. Nem se eu quisesse fazer um filme com dinheiro eu conseguiria", declara Tuoto, já no catálogo da Mostra.

Quanto às imagens apropriadas, elas fazem com que o entendimento do que seja a direção no cinema se modifique. Tuoto dispensa a noção de diretor em seu processo criativo. "Eu acredito em concepção, em mediação, em ressignificar aquilo que já existe. As pessoas são muito ligadas à ideia de uma sensibilidade autoral, que no fundo é uma vaidade." Para ele, mais importante é mediar o que é consumido, explicitando problemáticas.

Em Tiradentes, a proposta de Tuoto foi bem recebida. "Fico feliz pela atenção que o filme ganha, principalmente porque as possibilidades da política da apropriação ainda são bastante subestimadas no cinema, que vive a idealização do autor e o apego por uma imagem salvadora. A destruição de certas entidades pode nos revelar muito mais do que a criação de outras. Os destroços é que vão nos salvar, não os tijolos que acabaram de sair do forno", diz.

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