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Os Ensaios, de Montaigne, acabam de ser lançados em um único volume pela Penguin-Companhia das Letras | Reprodução
Os Ensaios, de Montaigne, acabam de ser lançados em um único volume pela Penguin-Companhia das Letras| Foto: Reprodução

Biblioteca básica

Alguns títulos – todos lançados nesta década, alguns nos últimos meses, além de periódicos – ajudam a entender e apreciar esse gênero que se renova: o ensaio. Confira:

Os clássicos

Os Ensaios, de Montaigne (Penguin-Companhia das Letras; tradução de Rosa Freire D’Aguiar).

Obra que inaugura o gênero em nova edição que traz textos selecionados dos três volumes originais.

A Arte de Escrever Ensaio e Outros Ensaios, de David Hume (Iluminuras; tradução de Márcio Suzuki e Pedro Pimenta).

Também em ótima seleção e tradução, o livro apresenta as reflexões do filósofo escocês do século 18 sobre vários temas – inclusive o próprio ensaio.

Os brasileiros

Ensaio Geral, de Nuno Ramos (Globo).

O artista plástico paulista tem se revelado um dos mais brilhantes ensaístas nativos – em temas que vão do espaço urbano ao futebol e à literatura.

O Mundo Fora dos Eixos, de Bernardo Carvalho (Publifolha).

Livro negligenciado do romancista carioca, reúne principalmente suas crônicas – na verdade, ensaios "disfarçados", publicados originalmente na Folha de S. Paulo.

Para entender o gênero

Inteligência com Dor – Nelson Rodrigues Ensaísta, de Luís Augusto Fischer (Arquipélago).

Para chegar à tese central – a de que Nelson Rodrigues foi ensaísta mais do que cronista –, o autor antes faz uma competente genealogia do ensaio (e da crônica também, aliás).

Em inglês

Changing My Mind – Occasional Essays, de Zadie Smith (Penguin Press).

Entre tantos ficcionistas também ensaístas em língua inglesa, difícil escolher uma indicação apenas (outra imprescindível é David Foster Wallace). Para quem quiser ir além da inglesa Zadie Smith, uma boa pedida é a coleção The Best American Essays.

Em revista

No Brasil: serrote, Dicta & Contradicta, piauí.

Nos Estados Unidos: The New Yorker, The Atlantic, The New Republic, Harper’s, entre muitas outras.

Rosa Freire D’Aguiar, uma das principais tradutoras do francês em atividade no país, não se considera uma especialista em Michel de Montaigne, autor de Os Ensaios e tido como o "pai" do gênero ensaístico. Mas, coberta de razão, pondera: "Ninguém melhor que o tradutor para esquadrinhar os meandros de um texto e lhe dar vida junto ao leitor". Certamente seu belíssimo trabalho para a edição recém-lançada do clássico de Montaigne, seleção criteriosa em volume único dos três volumes da obra integral, cumpre esse papel. Mais do que isso, a tradução fluente (ainda que fiel ao estilo peculiar de Montaigne no original) é uma ótima razão para concordar com Rosa quando diz que "as grandes obras clássicas não devem intimidar um tradutor – nem um leitor noviço, aliás". Na entrevista abaixo, cujas respostas foram enviadas por e-mail de Paris, ela fala de características que fundaram e permanecem marcantes no ensaio em geral e revela quais textos de Os Ensaios mais a encantam.

Na nota que escreveu à nova tradução de Montaigne, você chama a atenção para a pontuação peculiar do texto original e, ainda, para a "linguagem recheada de incisos, digressões, arcaísmos, trocadilhos, às vezes em detrimento da clareza". Por ser o livro que inaugura o gênero, Os Ensaios define também o que deve ser a própria linguagem ensaística?

O que une Os Ensaios ao que, com o tempo, se chamou "ensaio" como gênero literário, é a forma livre de discorrer, e a abrangência dos assuntos. Essas marcas que assinalei são mais típicas de Montaigne do que do gênero ensaístico. Até porque elas aparecem em autores de ficção. Só para citar alguns que eu traduzi, (o romancista francês Louis Ferdinand) Céline abusa dos incisos, Balzac, que traduzo neste momento, recorre a muitos trocadilhos, e às digressões, então, nem se fala! Todo grande autor é uma soma de particularismos, de idiossincrasias, de invenções no trato da língua que podem significar armadilhas para o tradutor. Convém que o leitor as conheça, daí eu tê-las explicitado na nova edição de Os Ensaios.

Ao mesmo tempo, há quem leia os ensaios de Montaigne como uma "conversa informal" do autor com o leitor. Você acha possível lê-los assim?

Idealmente, sim. Montaigne dizia escrever como falava "ao primeiro indivíduo que encontro". Não é propriamente assim. O tom coloquial é mais visível no Livro III, publicado quando a obra já tinha circulado em duas ou três edições. Os dois primeiros livros têm uma língua muito elaborada, com trechos estranhos. O conselho que dou é que o leitor se imagine, senão "conversando", ao menos assistindo à aula de um excelente professor de filosofia, que sabe encontrar num comportamento, numa citação, numa viagem, num encontro de beira de estrada, matéria para refletir, indagar, levar o pensamento mais longe. Ao falar dele, Montaigne fala de nós.

A modéstia – expressa no "Que sei eu?", lema do próprio Montaigne – parece se chocar, no gênero ensaio como um todo, com a tendência dos ensaístas a escreverem textos pessoais, voltados para o próprio umbigo, por assim dizer. Você vê essa contradição?

Mas os textos de Montaigne também eram muito pessoais! Na primeira página da obra ele adverte: "sou eu mesmo a matéria de meu livro". Montaigne viveu uma época de grandes transformações, de convulsões religiosas e políticas na Europa, e falou muito desse mundo exterior. Teve o que hoje chamaríamos de insights sobre uma infinidade de assuntos. Mas também circulou pela esfera da vida privada — e essa foi uma grande novidade, numa época em que falar de si mesmo era tachado de soberbia. Ele ignorou esse preconceito, discorreu sobre suas cólicas renais que tanto o fizeram sofrer, seus pesadelos recorrentes, a limpeza de seus dentes, a melhor posição de fazer amor. E até se queixa da natureza por ter lhe dado um sexo pequeno. Esse vaivém entre o mundo exterior e seu mundo interior é, aliás, um dos encantos da obra. O problema não é olhar para o umbigo, é saber o que fazer a partir dele.

Como tradutora, que tipo de transposição ao português você buscou?

Minha preocupação permanente foi fazer o leitor de hoje ter vontade de ler uma obra monumental escrita há mais de quatrocentos anos. Montaigne escreve num momento em que a língua francesa ainda não estava de todo fixada. Portanto há dificuldades e resistências em seu texto, que circula entre o velho francês, a sintaxe latina, o dialeto gascão. De alguma forma, essas dificuldades devem permanecer, para que o leitor tenha ideia da língua de Montaigne. Não dá para "modernizar" demais, do contrário vira pasteurização. Para ficarmos no ambiente de Montaigne, me coube ensaiar uma tradução. As grandes obras clássicas não devem intimidar um tradutor — nem um leitor noviço, aliás.

Quanto há, em Montaigne, de um certo "desleixo" de estilo como estratégia para fazer passar opiniões mais polêmicas?

Há quem afirme que certas frases e títulos de capítulos seriam de mera fachada, para enganar censores. Não me considero especialista em Montaigne. Mas ninguém melhor que o tradutor para esquadrinhar os meandros de um texto e lhe dar vida junto ao leitor. Por isso me atrevo a dizer que o não-especialista não chega a vislumbrar uma estratégia de Montaigne para passar entre as malhas da censura católica. É possível que ele tenha adotado eventualmente uma posição defensiva. Daí a saber se sua fé é sincera ou não, se seu catolicismo sofreu recuo ou não, isso é material que ainda vai alimentar muitos especialistas. O que se sabe de concreto é que, quando entrou no Vaticano, em fins de 1580, teve Os Ensaios – e todos os livros que levava – apreendidos para inspeção. A obra foi lida por um dominicano, que acabou lhe devolvendo o livro e o criticando por ter citado poetas hereges e pelo uso que fez da palavra "Fortuna". Montaigne rebateu dizendo que eram suas opiniões, ou seja, se dispôs a assumir o que escrevia.

Quais são, entre Os Ensaios, os teus preferidos? Por quê?

Acho que para qualquer leitor brasileiro o ensaio "Sobre os Canibais" é uma pérola. É aí que Montaigne conta o encontro que teve em Rouen com três tupinambás do Brasil, que lá estavam para ser apresentados ao rei Carlos IX. Isso foi em meados dos anos 1560. Fazia relativamente pouco tempo que os primeiros europeus tinham chegado às Américas, e menos ainda que começavam a ler narrativas sobre esse encontro de civilizações. Ora, ter um intelectual do nível de Montaigne, de cabeça aberta e curioso de tudo, reportando a conversa com um habitante (ainda que o intérprete não fosse lá essas coisas) de uma terra tão exótica e distante é uma chance rara. Imagine uma conversa de um grande filósofo atual com três marcianos... Outro belo ensaio é "Sobre a educação das crianças", em que Montaigne, que só teve filhas, imagina o que deve ser a educação de um menino. É de uma abertura de espírito, de uma acuidade em relação ao papel dos pais, e também de um humanismo, que devia ser leitura obrigatória para professores, diretores de escola, funcionários das secretarias de educação.

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