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Judeu nascido na Bessarábia (região histórica que se localiza na Europa Oriental e seu território se distribui entre a Moldávia e a Ucrâ­­nia), naturalizado brasileiro, Sa­­muel Wainer foi um nome capital da nossa imprensa. Durante 20 anos – de 12 de junho de 1951 a 25 de abril de 1971 –, ele comandou um império jornalístico singular. Fugiu à imagem do patrão au­­tocrata, exemplificado por Assis Chateaubriand, Roberto Marinho, Adolpho Bloch e outros "capitães" da mídia. Por sua origem de repórter, ficou sempre próximo das bases, um colega mais do que um empresário distanciado. É o que mostra o livro a ser lançado em outubro pela Civilização Brasileira, A Ro­­tativa Parou! Os Últimos Dias da Última Hora de Samuel Wainer, do jornalista Benicio Medeiros, que viveu na redação do jornal o dramático fim do que o próprio Wainer batizou de "sua grande aventura". Embora tenha pegado o bonde andando, quase no fim da linha, Benicio não se limita a relatar os estertores da Última Hora, mas traça um perfil fascinante do jornal e de seu criador. Descreve Wainer, quando o conheceu: "Dispensava o ‘doutor’, que é o tratamento dado no Brasil aos patrões. Era como qualquer um de nós, só que mais célebre e mais experiente. Magro, nervoso, usava uma espécie de uniforme: calça azul marinho, camisa de marinheiro, dessas que se compravam na Praça Mauá, e uma gravata escura, fina como uma tira, com o laço frouxo no pescoço. Circulava pela redação agitado, como se sua presença física, ou quem sabe o velho carisma, tivesse por si só o poder de salvar a UH da derrocada."

Depois de dirigir Diretrizes – uma publicação progressista que durou de 1938 a 1944, no auge do Estado Novo getulista –, ele se destaca como repórter de O Jornal, de Assis Chateaubriand, onde conseguiu "furos" como registrar a reação de Goering ao ouvir a sentença de morte no Julgamento de Nuremberg; localizar no México a filha de Luís Carlos Prestes com Olga Benário, a menina Anita Leocádia; e a entrevista com Getúlio Vargas "nos cafundós do pampa gaúcho" em que anuncia: "Eu voltarei como um líder das massas."

Getúlio, eleito Presidente, volta ao Palácio do Catete em 1951. Em sinal de gratidão, batiza Samuel de "Profeta" e o ajuda a fundar a Última Hora. Os inimigos, roem as unhas de inveja e partem para o ataque, encabeçados por Chatô, o ex-patrão, e Carlos Lacerda, o ex-amigo de juventude. Benicio compara a fúria de Lacerda contra Samuel "à cizânia de consequências mortais que se instala entre dois amigos antes inseparáveis no Ben-Hur de Lewis Wallace."

Frequentador do lar dos Wainer, tratado como filho, Lacerda trai a confiança da família e traz a público a origem estrangeira de Samuel. Alia-se a Chatô, cujo Diário de São Paulo publica em manchete: "Wainer não nasceu no ".

O jornal manda uma equipe à Bessarábia, com a missão de achar documentos que comprometam Samuel. A Constituição brasileira proibia que estrangeiros ou estrangeiros naturalizados fossem donos de jornais. Felizmente, para Samuel, os jornalistas de Chatô voltam com as mãos vazias. Mas o suicídio de Getúlio muda a sorte da UH e Samuel – que fora preso duas vezes pelo Estado Novo quando dirigia Diretrizes – volta ao xadrez em 1955. Recompõe-se politicamente com JK, Jânio e Jango. Chega a montar, em 1960, sua sonhada Rede Nacional de Última Hora, cobrindo sete estados: Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. O sonho ruiu com o golpe de 1.º de abril de 1964. A redação e a oficina de Última Hora no Rio foram depredadas por militantes do MAC (Movimento Anti-Comunista) e Samuel teve seus direitos políticos cassados; com o AI-5, em 1968, foi um dos primeiros nomes na lista de procurados pela ditadura. Além de eterno repórter, um eterno combatente pela democracia, outro traço em comum com seus comandados.A intimidade do dono de UH com os empregados beirava o absurdo. Samuel não interrompia o trabalho nem quando ia fazer pipi: "Para ganhar tempo, conduzia um subordinado ao banheiro e continuava, enquanto fazia uso do vaso sanitário, lhe dando instruções. O interlocutor, por causa do es­­­­­­­tilo agitado do chefe, acabava às vezes vitimado por alguns respingos."

Esse populismo contrastava com o Samuel "colunável" casado com Danuza Leão, "quando o casal Wainer aparecia às vezes de surpresa na redação. Costumava acontecer de madrugada. Samuel saía de alguma festa ou boate da moda, altas horas, e levava um grupo de bacanas – homens de smo­­king, mulheres trajando longos desenhados pelos grandes mestres da alta costura – para conhecer a UH, seu grande orgulho."

Aos trancos e barrancos, com Samuel exilado em Paris, a UH atravessou galhardamente os anos 60, sob o comando de jornalistas competentes como Janio de Freitas. Seu Segundo Caderno, trazia pesos-pesados do texto leve: Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, com sua crítica mordaz do FEBEAPÁ (Festival de Besteira que Assola o País) e com as Certinhas do Lalau, retratando boazudas do teatro do rebolado; Nelson Rodrigues com a coluna "A Vida como Ela É"; Antônio Maria com suas crônicas líricas da noite carioca. Escreve Benicio: "Muitos jovens leitores passaram a preferir o tom descontraído da UH à sisudez engravatada dos concorrentes."

Devendo a Deus e a todo mundo, Samuel vendeu a UH em 1971. Não conseguiu saldar todas as dívidas. De patrão, virou empregado. De Adolpho Bloch, de Domingo Alzugaray, de Octávio Frias – por ironia na UH paulista, comprada pela Folha de S. Paulo. Acabou num conjugado em cima de um supermercado no centro de São Paulo, batucando numa Olivetti sobre a única cadeira do apartamento. Um dia sentiu-se mal, pegou um táxi para o Albert Einstein, preencheu sozinho a papelada de internação e, com falta de ar e dores no peito, morreu no corredor do hospital, aos 70 anos.

Na epígrafe do livro, Benicio Medeiros cita uma frase da autobiografia de Samuel Wainer, Minha razão de viver: "Contem­­plando meu percurso, constato ter vivido uma experiência humana completa ao cumprir uma trajetória que me permitiu conhecer a ascensão, a glória e a queda."

Serviço: A Rotativa Parou! Os Últimos Dias da Última Hora de Samuel Wainer, de Benicio Medeiros. Editora Civilização Brasileira. Preço ainda não divulgado.

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