Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
música erudita

Ouça isso

Apesar de refinado, gênero secular se mantém vivo, promove discussões e atrai tanto senhores alinhados quanto jovens roqueiros

O maestro Georges Pretre ensaia com a Orquestra Filarmônica de Viena | Herwig Prammer/ Reuters
O maestro Georges Pretre ensaia com a Orquestra Filarmônica de Viena (Foto: Herwig Prammer/ Reuters)

Era uma apresentação de gala da Orquestra Sinfônica do Paraná. O Teatro Guaíra estava lotado. Ternos e vestidos desfilavam até encontrar sua poltrona.

Minutos depois, "Quebra Nozes", balé de Piotr Tchaikovsky (1840-1893), rompeu o silêncio. No decorrer da apresentação, reações diversas. Houve quem deixasse o teatro antes da apresentação do pianista Álvaro Siviero; houve quem aplaudisse entusiasticamente; houve quem bocejasse enquanto procurava uma posição melhor na cadeira.

Ame-a ou deixe-a. Parece ser essa a relação estabelecida com a música erudita. Sagrada, intocável, distante? Ou sublime, mas não valorizada? O Caderno G Ideias de hoje pretende apontar fatores que expliquem as nuances desse gênero, eternizado em nomes que hoje são facilmente identificáveis (pense em Bee­tho­ven ou Vivaldi), mas que ainda parece buscar meios e formas de se popularizar – por mais contraditório que possa parecer.

O maestro carioca Roberto de Regina, cofundador da Camerata Antiqua de Curitiba, trata logo de aparar algumas arestas. "Não é música clássica porque o classicismo é um período, que vai de 1750 ao começo do século 19. Mas também não gosto do termo música erudita, que é muito pretensioso. É como se quem ouvisse isso fossem só pessoas de erudição. E, historicamente, não é assim. Quando foram escritas, a maioria das sinfonias era voltada para o povo, e não para a elite", diz o maestro.

Em sua opinião – para evitar um pré-distanciamento ou discriminação –, o gênero deveria se chamar "a música".

E quem ouve "a música"? En­­gana-se quem pensa que música erudita é só para teatros com poltronas aveludadas e senhores grisalhos em sapatos lustrosos. Ministrando aulas de música a jovens de escolas públicas do Rio de Janeiro, De Regina se surpreende. "Eu faço concertos no cravo, que é um instrumento delicado e oposto a essa massa decibérica que os jovens estão acostumados a ouvir."A reação depois do silêncio respeitoso que dura en­­quanto o cravo vibra é "impressionante". Há perguntas, discussões e até pedidos de "mais um". "Isso prova que o que falta é oportunidade. Porque a boa música está aí", conta, lembrando que muitos jovens ouvem a música ao mesmo tempo que batem os pés para acompanhá-la.

Um pouco mais cético quanto à capacidade de disseminação da música erudita é o maestro e professor Osvaldo Colarusso. O gênero seria rebuscado demais para se compreender sem algum prelúdio – iniciação musical e certa pré-disposição do ouvinte. "Ela não é, a priori, fácil. Não adianta ouvir Beethoven enxugando louça, sem se concentrar. Ela requer uma doação do ouvinte, o exige. Música erudita não serve para música de fundo. É como um romance de Dostoiévski e um livro do Paulo Coelho. Este você pode ler no banheiro", argumenta.

"A música" do maestro carioca se transforma em "música de linguagem" para Colarusso. O termo foi cunhado pelo poeta paulista Décio Pignatari. E ela atrairia de igual forma ouvintes de diversas classes sociais. "Conheço pessoas que adquiriram o hábito de ouvir música clássica de forma espontânea. Apesar das aparências, um dado é: quem gosta não é necessariamente rico. Rico gasta em show de Chitãozinho e Xororó", dispara.

Os dois maestros defendem que há um relativo público interessado no gênero. Mas, para Colarusso, ao contrário da constante e profícua renovação dos músicos, os ouvintes não aumentam na mesma medida. "A música erudita tem uma relação muito próxima com a educação. Como a educação no Brasil é muito ruim, o público vai ser pouco. Moro perto de uma escola estadual de Curitiba e fiquei chocado quando passei pelo pátio e vi meninos dançando e cantando hip-hop em inglês na hora do recreio. Aquele som não tem nenhum sentido educativo", diz Colarusso, sem saber que o maestro Zubin Mehta ouve rap (leia entrevista na página 3). "Mesmo? Estou surpreso!", revela.

Dono de um acervo de cerca de 3 mil vinis e 5 mil CDs – metade de música erudita –, o musófilo Paulo José da Costa relembra a mensagem em cada peça musical. "Toda música é uma mensagem. Um cara lá no século 18 compôs tentando dizer algo. Então a música se basta. Ou ela te toca ou não te toca".

Dono do sebo Fígaro, em Curi­tiba, Costa descarta a iniciação musical prévia como necessidade para se aproximar da música erudita. E comprova quando fala de seus compradores. "Tenho clientes que são agricultores e ouvem música sertaneja. Às vezes, eles escolhem um disco de música clássica e me pedem conselhos sobre ele", diz.

Jovens roqueiros e cabeludos também são vistos vasculhando as prateleiras. "Alguns querem ouvir Wagner porque viram um filme".

O ponto de convergência dos maestros e do musófilo, apesar de diferentes visões sobre o tema, é nítido: em coro, todos dizem: "ouça isso".

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.