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O mar inspirou Caymmi, que não sabia nadar, a criar canções de exaltação e tragédia | Divulgação
O mar inspirou Caymmi, que não sabia nadar, a criar canções de exaltação e tragédia| Foto: Divulgação

Quem desenhou a "baiana" de Carmen Miranda?

Um dos ícones da moda na cultura do século 20 foi a baiana estilizada de Carmen Miranda. Quem foi o estilista genial que a desenhou? Ninguém menos do que Dorival Caymmi, na canção "O Que É Que a Baiana Tem?". A letra é um perfeito molde da indumentária que consagrou a Pequena Notável.

O que é que a baiana tem?

O que é que a baiana tem?

Tem torso de seda tem

Tem brinco de ouro tem

Corrente de ouro tem

Tem pano da Costa tem

Tem bata rendada tem

Pulseira de ouro tem

E tem saia engomada tem

Tem sandália enfeitada tem

E tem graça como ninguém...!

O que é que a baiana tem?

Como ela requebra bem...!

O que é que a baiana tem?

Quando você se requebrar caia

por cima de mim

O que é que a baiana tem?

Mas o que é que a baiana tem?

O que é que a baiana tem?

Tem torso de seda tem

Tem brinco de ouro tem (ah!)

Corrente de ouro tem (que bom!)

Tem pano da Costa tem

Tem bata rendada tem (e que mais?)

Pulseira de ouro tem

Tem saia engomada tem

Sandália enfeitada tem

Só vai no Bonfim quem tem...

O que é que a baiana tem?

Só vai no Bonfim quem tem...

O que é que a baiana tem?

Um rosário de ouro, uma bolota assim

Ai, quem não tem balangandãs

não vai no Bonfim

Ôi, quem não tem balangandãs

Não vai no Bonfim

Ôi, não vai no Bonfim

  • Caymmi ao lado da Pequena Notável, Carmen Miranda, cuja indumentária é descrita em
  • Carioca de Copacabana a maior parte de sua vida, compositor inovou a canção de amor urbana

Baiano de Salvador, com sua voz e seu violão, ele modernizou a MPB a partir de seus cantos do mar e do samba-canção, influenciando a bossa nova, a tropicália e tudo o que veio depois. Legou aos três filhos sua musicalidade e viveu 94 anos ricos em criação. Como sentenciou Caetano: "Escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70. Mas ele tem 70 canções perfeitas e eu não."

Em 2014 o Brasil lembra os 50 anos sem Ary Barroso e os 20 anos sem Tom Jobim. E celebra os 100 anos de Dorival Caymmi, nascido em 30 de abril de 1914. Mais do que um elo perdido entre Ary e Tom, Dorival cobriu uma infinidade de estilos, paisagens e horizontes. Só o ciclo do mar já o tornaria imortal. "O Mar", "Quem Vem pra Beira do Mar", "A Jangada Voltou Só", "Noite de Temporal", "História de Pescadores" — são cantos de exaltação e de tragédia: o mar que traz o sustento ao pescador, de repente se transforma no seu túmulo. Mas Caymmi acha sempre um consolo, como no clássico "É Doce Morrer no Mar", com letra de Jorge Amado ("É doce morrer no mar/ nas ondas verdes do mar."); ou na bela marcha-rancho "Canção da Partida" ("Se Deus quiser/ quando eu voltar do mar/ um peixe bom eu vou trazer"). Na conexão baiana, entra ainda o candomblé ("Ele foi se afogar/ fez sua cama de noivo/ no colo de Yemanjá"). Esse culto afro-brasileiro juntou o eclético Dorival, com o comunista Jorge Amado, o pintor argentino Carybé e o cosmopolita diplomata, poeta e letrista Vinicius de Moraes. Caymmi dedicou a Yemanjá canções como "Dois de Fevereiro", "Sargaço Mar", "Promessa de Pescador"; e compôs a famosa "Oração de Mãe Menininha", consagrada na voz de Clementina de Jesus.

Origens

Tudo isso vem da Bahia, como o próprio Caymmi. Seu bisavô, um engenheiro italiano, veio ao Brasil trabalhar nos reparos do Elevador Lacerda. O pai de Dorival, funcionário público, tocava piano, violão e bandolim. A mãe, dona de casa, mestiça de portugueses e africanos, ficava em casa cantando o dia inteiro. Ouvindo discos de 78 rotações na vitrola, o menino sonhava em ser compositor. Aos 13 anos, interrompe os estudos e vai trabalhar como auxiliar na redação de O Imparcial. O jornal fecha em 1929, o rapazinho vai vender bebidas. Aos 16, escreve sua primeira música: "No Sertão"; aos 20, estreia como cantor e violonista na Rádio Clube da Bahia; aos 21, apresenta o musical Caymmi e Suas Canções Praieiras; aos 22, vence o concurso de músicas de carnaval com o samba "A Bahia" também dá. Gilberto Martins, diretor da Rádio Clube da Bahia, o estimula a seguir carreira no Sul do país.

Em 1938, já no Rio, com 24 anos, cantando na Rádio Tupi, Caymmi compõe "O Que É Que a Baiana Tem?". Gravada em duo, por Carmen Miranda e Caymmi, a canção figurou no filme nacional Banana da Terra (1939) e tornou-se um trampolim para a carreira internacional de Carmen. Dez anos mais velho do que Caymmi, Ary Barroso, mineiro de Ubá, foi o primeiro a garimpar a rica mina da baianidade ("Na Baixa do Sapateiro", "No Tabuleiro da Baiana"). Mas Caymmi encontrou o filão principal, em temas como "Samba da Minha Terra", "São Salvador", "365 Igrejas", "Saudade da Bahia", "Você Já Foi à Bahia?". Descreveu também, como poucos, a sensualidade da baiana, em canções como "O Que É Que a Baiana Tem?" ("Tem graça como ninguém.../Como ela requebra bem..."), "Requebre Que Eu Dou um Doce" ("Moreninha da sandália/ do pompom grená/ quando acabar com a sandália de lá/ venha buscar essa sandália de cá/ pra não parar de sambá"), "A Vizinha do Lado" ("Ela mexe com as cadeiras/ ela mexe com o juízo/ do homem que vai trabalhar"), "Lá Vem a Baiana" ("Coberta de contas/ pisando nas pontas,/ achando que eu sou o seu ioiô"), "O Dengo Que a Nêga Tem" ("Tem dengo no remelexo, meu bem!/ tem dengo no falar também/ E atrás do dengo dessa nêga/ todo mundo vem!")

Muitas destas baianas dengosas são as musas nomeadas de Caymmi: Dona Chica, Juliana, Marina, Doralice e a Rosa Morena ("Onde vais morena Rosa?/ Com essa rosa no cabelo/ e esse andar de moça prosa?"). Tem até uma musa importada: Dora ("rainha do frevo e do maracatu"), que ele encontrou no "Recife/ dos rios cortados de pontes/ dos bairros, das fontes/ coloniais." E uma anti-musa, a caprichosa Anália, que reluta em ir para Maracangalha. ("Se Anália não quiser ir/ eu vou só/ eu vou só/ eu vou sem Anália/ mas eu vou." "Eu Vou pra Maracangalha", sucesso do carnaval de 1957, lhe deu dinheiro para comprar um sítio batizado com o nome da música.

Em trânsito

A viagem é outro tema de Caymmi. "Fiz uma Viagem" (1956) reencena a saga trágica do retirante nordestino. "Morreu o meu tatu-bola/ filho do tatu-bolinha." Graças a Caymmi, os brasileiros souberam da existência do simpático animalzinho que é a mascote da Copa do Mundo no ano do centenário do compositor. "Peguei um Ita no Norte" (1945) é autobiográfico: foi num Ita que Caymmi veio tentar a sorte no Rio em 1938. A canção celebrizou os navios a vapor da Companhia Nacional de Navegação, que ligavam toda a costa do país e tinham nomes indígenas começados por Ita. Foram os Itas Itagiba e Itapagé, torpedeados por submarinos alemães, que levaram o Brasil a declarar guerra ao Eixo em 1942. Até um presidente brasileiro nasceu a bordo de um Ita, entre Rio e Salvador, em 1930: Itamar Augusto Cautiero Franco.

Morador do Rio de Janeiro a maior parte de sua vida – e carioca de Copacabana – Caymmi inovou a canção de amor urbana. Seu samba-canção moderno abriu caminho para a bossa nova. Enxuto, sem recheios nem enfeites, não tinha abajures lilás nem quimeras que se esfumam. Simples e direto, ia ao cerne da questão: o sentimento. Por exemplo, em "Nem Eu": "E como o acaso é importante querida/ de nossas vidas, a vida/ fez um brinquedo também." Ou "Só Louco": "Só louco/ amou como eu amei/ só louco/ quis o bem que eu quis."); "Não Tem Solução": "Não tem solução/ este novo amor/ um amor a mais/ me tirou a paz/ e eu que esperava/ nunca mais amar/ não sei o que faço/ com este amor demais." E "Nunca Mais": "Mas agora eu não quero e nem posso/ nunca mais/ o que tu me fizeste, amor, foi demais." No bonito "Sábado em Copacabana", parceria com Carlos Guinle, exalta seu bairro carioca favorito: "Um bom lugar, para encontrar, Copacabana/ Pra passear à beira-mar, Copacabana/ Para se amar, um só lugar, Copacabana." Sutil comentarista da guerra dos sexos em suas canções, Caymmi viveu um casamento feliz de 68 anos, com a mineira Adelaide Tostes. E morreram quase juntos, em 2008, ela dez dias depois dele.

Duas curiosidades: cronista dos romances urbanos dos anos 50, da Era dos Caddilacs, Caymmi nunca soube dirigir; jamais desfrutaria de uma "corrida de submarino" ao luar na praia de Copacabana. Cantor-mor do mar, Dorival Caymmi não sabia nadar. Se afogaria até nas águas rasas da lagoa de Abaeté. Como dizia o cineasta Billy Wilder, ninguém é perfeito. Mas Caymmi chegou, como poucos, milimetricamente perto da perfeição.

Tem DNA na MPB

Caymmi conheceu a mulher de sua vida num programa de calouros, a cantora mineira Adelaide Tostes, que adotou o nome artístico de Stella Maris. Casaram em 1940 e a Sra. Caymmi abandonou a carreira para cuidar da prole: Nana (Dinair), nascida em 1941; Dori(val), em 1943; e Danilo, em 1948. Dotada de uma bela voz, Nana estreou em 1960 num álbum do pai cantando "Acalanto", que ele compôs para ela ainda criança. O casamento com um médico venezuelano a levou a morar uns tempos em Caracas, mas a carreira os separou. Nana estourou em 1966 no 1.º Festival Internacional da Canção (Fic), no Maracanãzinho, com "Saveiros", parceria do irmão Dori com Nelson Mota. A partir daí, consolidou uma carreira brilhante na música, impondo também sua personalidade solar junto à mídia.

Dori estreou em 1960 acompanhando a irmã ao violão, participou dos espetáculos Opinião (1964) e Arena Conta Zumbi (1966), marcos iniciais da resistência contra a ditadura, destacou-se como compositor, produtor de discos (Eumir Deodato, Edu Lobo, Nara Leão). Suas turnês com o saxofonista americano Paul Winter lhe abriram o mercado americano, permitindo-lhe fixar-se em Los Angeles desde o final dos anos 80. Dori Caymmi fez a ponte entre a bossa nova e a MPB moderna e também entre a MPB e o jazz, gravando com artistas do calibre de Dionne Warwick, Eliane Elias, Oscar Castro Neves e Toots Thielemans.

O caçula Danilo enveredou para o instrumental. Compositor, arranjador e exímio flautista, destacou-se no 3.º Fic com "Andança", que lançou a cantora Beth Carvalho. Escreveu trilhas para seriados e novelas da TV Globo e teve uma longa convivência com Tom Jobim, participando da histórica Banda Nova, com sua mulher Simone, cantora. A filha do casal, Alice, já iniciou uma carreira de sucesso como cantora e compositora. Já a filha de Nana, Stella, canta muito bem, mas preferiu fazer mestrado e doutorado em Literatura Brasileira (PUC-Rio) e tornou-se a cronista oficial da família. Entrevistou o avô Dorival regularmente em seus últimos 17 anos de vida. E publicou os livros Dorival Caymmi: o Mar e o Tempo (2001), Caymmi e a Bossa Nova (2008) e O Que É Que a Baiana Tem? – Dorival Caymmi na Era do Rádio (2013).

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