
O italiano Antonio Tabucchi é o mais português dos escritores italianos. É o que ele mesmo descobriu, ainda jovem, quando, ao retornar à Itália após um período de estudos em Paris, "topou", na rua, com o poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. O poema que inicia com a estrofe "Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo" determinaria sua trajetória futura.
De volta a Pisa, sua cidade natal, Tabucchi matriculou-se na Faculdade de Letras e deu início às suas investigações sobre a cultura lusa. Em 1973, foi convidado a lecionar Língua e Literatura Portuguesa, em Bolonha.
Três décadas depois, o professor é autor premiado de 25 obras incluindo um livro escrito em português (Réquiem, de 1992). O mais recente, Tristano Morre, de 2004, que acaba de ser lançado no Brasil, parece condensar todos os temas que lhe são caros: a reflexão sobre a escrita e o papel da literatura; a memória; a nostalgia; o acaso; a busca por compreender a si mesmo e a vida; as viagens; e, como não poderia faltar, o posicionamento político.
Neste pequeno romance de 192 páginas, o escritor toscano, de 64 anos, oferece ao leitor uma espécie de quebra-cabeças bagunçado de uma vida a vida de Tristano, um militar de quase 80 anos, devorado pela gangrena, que decide contar sua história a um escritor em seu leito de morte. O relato não é confiável, afinal, Tristano está doente, sob o efeito de morfina, e sua memória é vacilante. Mas, justamente por isso, ele é o personagem ideal para Tabucchi pôr em prática uma discussão extremamente contemporânea a respeito da memória e da própria literatura. Afinal, a verdade é sempre muito relativa, como sugere Tristano, com agudeza de raciocínio surpreendente: "(...) escreva tudo, tudo, com morfina ou sem ela, recolha tudo o que puder, os fragmentos e também as migalhas, eu também sou o meu delírio".
Para o escritor, Tristano Morre é "sobretudo um romance sobre a necessidade de testemunhar e o desejo de responder". A meta-reflexão é necessária em uma cultura como a nossa em que a palavra pronunciada só é legitimada pela escrita. Sobre isso, filosofa Tristano ao autor anônimo: "As coisas pertencem a quem as diz ou a quem as escreve?". Ele reconhece que sua voz é efêmera mas, sabe que, se ela for transposta em palavras, perderá o viço. Por isso, despreza o escritor: "Você veio até aqui para recolher uma vida. Mas sabe aquilo que recolhe? Palavras. Ou melhor, ar, meu amigo, as palavras são sons feitos de ar.".
Entre troças e grosserias, Tristano conta-lhe sua história de forma bamboleante sabendo que "são poucas as memórias que nos ficam" e que "o tempo do relógio não acompanha pari passu o tempo da vida" , confiante na capacidade de edição de seu locutor. O protagonista representa a oralidade, dimensão oposta ao ato de escrever, sempre fabricada (como já dizia Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor"). Tabucchi estabelece um pacto ético com seu personagem, explicitado em sua forma de narrar que respeita as elipses, as digressões, as repetições de quem, dentro do romance, conta a história. Tristano não acredita que se pode encerrar toda uma vida em uma biografia e, por isso, abusa de sua senilidade: "Ouça, vou inventar o resto da história, só para continuar a falar, como vê sou honesto, confesso que estou inventando (...)".
Na guerra da Itália contra o nazismo, o personagem tornou-se herói quase por acaso, mas recusa-se a ser inscrito na história como um "Tristano irrepreensível", "incontestável". "É estranho, você, em poucas páginas, conseguiu ser aquilo que uma pessoa verdadeira nunca conseguiu ser em toda a sua vida", diz ao autor. Mais do que uma reflexão sobre a palavra, ao criar um herói disposto a revelar-se inteiro, Tabucchi questiona o mito do heroísmo. "O herói é um homem igual a todos os outros, com sua parte sombria", disse em entrevista à Magazine Littéraire.
Tristano Morre é um livro rico, vivo, em que as questões da vida e da literatura se sobrepõem permantemente. Não seria possível mencioná-las todas aqui, e esta nem deve ser a proposta. É como afirma Tabucchi ao refletir sobre a nostalgia de seus personagens: "Devemos sempre fazer escolhas, e com freqüência nossas escolhas implicam em renúncias". E, se me permitem sugerir uma escolha, leiam Tabucchi.
Serviço: Tristano Morre, de Antonio Tabucchi (Editora Rocco, 189 págs., R$ 22,50).



