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Tabucchi escreveu 25 livros, um deles, Réquiem, em português | Divulgação
Tabucchi escreveu 25 livros, um deles, Réquiem, em português| Foto: Divulgação

Perfil

"(...) na serra, Tristano andava com uma metralhadora às costas, evidentemente, e foi com essa metralhadora que se tornou o herói que você sabe, mas naquele tempo andou com uma luneta de cobre a que estava apegado e que pertencera a seu avô, em garoto descobrira o céu com aquela engenhoca, e levou-a consigo para contemplar as estrelas do alto dos montes, porque quanto mais alto se está mais nítidas são as estrelas... Um inglês que também escrevia livros disse que vivemos todos num esgoto, mas que alguns de nós contemplam as estrelas, e talvez Tristano quisesse contemplar as estrelas porque o seu país era um autêntico esgoto... E que me diz você agora do seu? Gosta?"

Trecho extraído de Tristano Morre, de Antonio Tabucchi, p. 51.

• Antonio Tabucchi nasceu em Pisa, Itália, em 1943. Escreveu seu romance de estréia, Piazza D’Italia, em 1973. Mas, somente em 1984 lançaria o romance que o revelaria como autor, Noturno Indiano, que virou filme em 1989, dirigido por Alain Corneau, com Jean-Hugues Anglade, Clémentine Célarié e Otto Tausig. O protagonista é um homem à procura de um amigo desaparecido na Índia, na verdade , em busca de sua própria identidade.

• Professor de Literatura do Departamento de Português da Universidade de Pisa, Tabucchi é um dos mais conhecidos estudiosos de Fernando Pessoa, cuja obra traduziu para o italiano.

• Escreveu 25 livros. No Brasil, foram publicados A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro, Afirma Pereira, A Mulher de Porto Pim, Noturno Indiano, O Anjo Negro, Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa, Os Voláteis do Beato Angélico, Réquiem, Está Ficando Tarde Demais e Sonhos de Sonhos, todos pela Editora Rocco.

• Tabucchi travou um polêmico embate com outro célebre escritor italiano, Umberto Eco. Para o autor de O Nome da Rosa, a tarefa do intelectual é unicamente organizar o conhecimento, enquanto Tabucchi reivindica o direito de tomar posição e "soar o alarme", se for necessário (AV).

O italiano Antonio Tabucchi é o mais português dos escritores italianos. É o que ele mesmo descobriu, ainda jovem, quando, ao retornar à Itália após um período de estudos em Paris, "topou", na rua, com o poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. O poema que inicia com a estrofe "Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo" determinaria sua trajetória futura.

De volta a Pisa, sua cidade natal, Tabucchi matriculou-se na Faculdade de Letras e deu início às suas investigações sobre a cultura lusa. Em 1973, foi convidado a lecionar Língua e Literatura Portuguesa, em Bolonha.

Três décadas depois, o professor é autor premiado de 25 obras – incluindo um livro escrito em português (Réquiem, de 1992). O mais recente, Tristano Morre, de 2004, que acaba de ser lançado no Brasil, parece condensar todos os temas que lhe são caros: a reflexão sobre a escrita e o papel da literatura; a memória; a nostalgia; o acaso; a busca por compreender a si mesmo e a vida; as viagens; e, como não poderia faltar, o posicionamento político.

Neste pequeno romance de 192 páginas, o escritor toscano, de 64 anos, oferece ao leitor uma espécie de quebra-cabeças bagunçado de uma vida – a vida de Tristano, um militar de quase 80 anos, devorado pela gangrena, que decide contar sua história a um escritor em seu leito de morte. O relato não é confiável, afinal, Tristano está doente, sob o efeito de morfina, e sua memória é vacilante. Mas, justamente por isso, ele é o personagem ideal para Tabucchi pôr em prática uma discussão extremamente contemporânea a respeito da memória e da própria literatura. Afinal, a verdade é sempre muito relativa, como sugere Tristano, com agudeza de raciocínio surpreendente: "(...) escreva tudo, tudo, com morfina ou sem ela, recolha tudo o que puder, os fragmentos e também as migalhas, eu também sou o meu delírio".

Para o escritor, Tristano Morre é "sobretudo um romance sobre a necessidade de testemunhar e o desejo de responder". A meta-reflexão é necessária em uma cultura como a nossa em que a palavra pronunciada só é legitimada pela escrita. Sobre isso, filosofa Tristano ao autor anônimo: "As coisas pertencem a quem as diz ou a quem as escreve?". Ele reconhece que sua voz é efêmera – mas, sabe que, se ela for transposta em palavras, perderá o viço. Por isso, despreza o escritor: "Você veio até aqui para recolher uma vida. Mas sabe aquilo que recolhe? Palavras. Ou melhor, ar, meu amigo, as palavras são sons feitos de ar.".

Entre troças e grosserias, Tristano conta-lhe sua história de forma bamboleante – sabendo que "são poucas as memórias que nos ficam" e que "o tempo do relógio não acompanha pari passu o tempo da vida" –, confiante na capacidade de edição de seu locutor. O protagonista representa a oralidade, dimensão oposta ao ato de escrever, sempre fabricada (como já dizia Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor"). Tabucchi estabelece um pacto ético com seu personagem, explicitado em sua forma de narrar que respeita as elipses, as digressões, as repetições de quem, dentro do romance, conta a história. Tristano não acredita que se pode encerrar toda uma vida em uma biografia e, por isso, abusa de sua senilidade: "Ouça, vou inventar o resto da história, só para continuar a falar, como vê sou honesto, confesso que estou inventando (...)".

Na guerra da Itália contra o nazismo, o personagem tornou-se herói quase por acaso, mas recusa-se a ser inscrito na história como um "Tristano irrepreensível", "incontestável". "É estranho, você, em poucas páginas, conseguiu ser aquilo que uma pessoa verdadeira nunca conseguiu ser em toda a sua vida", diz ao autor. Mais do que uma reflexão sobre a palavra, ao criar um herói disposto a revelar-se inteiro, Tabucchi questiona o mito do heroísmo. "O herói é um homem igual a todos os outros, com sua parte sombria", disse em entrevista à Magazine Littéraire.

Tristano Morre é um livro rico, vivo, em que as questões da vida e da literatura se sobrepõem permantemente. Não seria possível mencioná-las todas aqui, e esta nem deve ser a proposta. É como afirma Tabucchi ao refletir sobre a nostalgia de seus personagens: "Devemos sempre fazer escolhas, e com freqüência nossas escolhas implicam em renúncias". E, se me permitem sugerir uma escolha, leiam Tabucchi.

Serviço: Tristano Morre, de Antonio Tabucchi (Editora Rocco, 189 págs., R$ 22,50).

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