
Tocada pelos textos de André Gide e Franz Kafka dois de uma lista extensa de escritores admirados , Susan Sontag fez de seu diário um exercício pesado em busca de autoconhecimento. Para ela, a experiência de pôr no papel ideias e sentimentos que não diria a mais ninguém é mais complexa do que se supõe. "No diário eu não apenas exprimo a mim mesma de modo mais aberto do que poderia fazer com qualquer pessoa; eu me crio", escreve, aos 24 anos. E continua: "O diário é um veículo para o meu sentido de individualidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente) não apenas registra minha vida real, diária, mas sim em muitos casos oferece uma alternativa para ela".Diários (1947-1963), publicado pela Companhia das Letras, é o primeiro de três volumes organizados por David Rieff, filho do casamento de seis anos da autora com o pesquisador Philip Rieff (1922-2006), que realizou trabalhos relevantes ligados à psicanálise. Depois da morte de Susan em 2004, aos 71 anos, David teve de decidir entre publicar ou ignorar um armário de cadernos em que a mãe escreveu ao longo de toda a vida.
No prefácio do primeiro volume, ele se mostra um pouco hesitante ao defender a publicação do livro. Susan escreveu poucos textos autobiográficos e procurava preservar sua vida privada, mas, segundo o filho, adorava diários quanto mais íntimos melhores.
As entradas começam com Susan aos 14 anos (e não 15, como diz a contracapa do livro). Logo no início, impressionam suas observações sobre a vida e a arte, e a disposição para entender e assumir sua homossexualidade em 1989, ela daria início a um relacionamento com a fotógrafa Annie Leibovitz, sua companheira até o fim.
"As ideias perturbam a regularidade da vida", escreveu em 1948. No mesmo ano: "E o que é ser jovem durante anos e de repente despertar para a angústia, a premência da vida?".
É longa a luta consigo mesma para começar a escrever de uma vez e aceitar a exposição que isso implica. A certa altura, ela diz que deve parar de procrastinar e colocar no papel tudo o que vier à cabeça. "Para escrever, tenho de amar o meu nome", "para escrever, é preciso permitir-se ser a pessoa que você não quer ser (entre todas as pessoas que você é)."
De tempos em tempos, Susan reafirma o que considera importante e censura seus defeitos (nunca chegar na hora, mentir, falar demais, preguiça, falta de vontade para recusar). Numa entrada específica, ameaça listar as características que detesta em alguém, mas interrompe a frase antes disso, como se estivesse decidida a entender seus problemas antes de se ocupar dos alheios.
Susan casou com o acadêmico Philip Rieff em 1951, ano em que há somente um dia registrado no diário o do matrimônio , em que ela afirmava saber de seu impulso de autodestrutividade. David, na condição de editor, explica que não existe nenhuma informação dos dois anos seguintes isso, ou ele procurou preservar a memória do pai.
Quando retoma o diário, em 1953, os escritos se tornam esparsos, com intervalos grandes (7, 8, 19 meses) entre um texto e outro. É quando ela faz observações sobre amor, paixão e casamento. Este "é uma instituição destinada a embotar os sentimentos. Toda a questão do casamento se resume na repetição. O melhor que ele almeja é a criação de dependências fortes e mútuas".
Por vezes, há apenas uma frase solta "Proximidade sem amor" que deixa entrever o que ela estaria pensando. Sentindo-se angustiada pela rotina de muitas brigas e poucos carinhos, ela vai buscar socorro na literatura e a encontra no poeta Rainer Maria Rilke. "Rilke achava que a única maneira de manter o amor no casamento era com atos perpétuos de separação-retorno", cita, em novembro de 56. Em outro momento, usa uma frase dele como lema: "Deseje toda mudança".
Enfim, a separação acontece em 57, no dia 3 de setembro. No diário, ela anota de modo obsessivo tudo o que fez. Tudo. Comidas que comeu, caminhos que percorreu e lugares por que passou. Gestos banais, como colocar o cadeado na mala, estão ali. Talvez ela não quisesse esquecer de nenhum detalhe. O primeiro volume dos diários termina quando Susan está com 30 anos, valorizando música, Shakespeare e crianças. Lamentando a carência sexual e a intelectual, mas aberta à paixão, "a sensação sutil entusiasmada inesquecível da singularidade do outro".
Serviço: Diários (1947-1963), de Susan Sontag. Companhia das Letras, 342 págs., R$ 51.



