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Pelas superfícies do grafite

OSGEMEOS: dos muros de São Paulo aos museus internacionais | Reprodução
OSGEMEOS: dos muros de São Paulo aos museus internacionais (Foto: Reprodução)

Foucault diz que é necessário mergulhar no interior de um discurso para investigá-lo. Esta foi a tônica da visita de meu amigo chato de São Paulo (Macsp) que esteve comigo no MON.Macsp: Detesto OSGEMEOS!

Eu: Por quê? Eles fazem tanto sucesso! Já pintaram a fachada da Tate!

Macsp: Não foram os únicos, lembre-se! Mas por isso mesmo. É como se, não bastando o que já importamos, importássemos o que já nos pertence... Embora o tipo de trabalho d'OSGEMEOS não nos pertença!

Eu: Como assim? OSGEMEOS são artistas brasileiros, assim como o assume vivid astro focus, que tem uma linguagem, digamos, cosmopolita...

Macsp: Para começar, não são artistas; são artesãos. Depois, tiveram sorte. Entre centenas de grafiteiros (que não são artistas; são artesãos) do mundo todo, caíram nas graças de algum curador...

Eu: Isso não é privilégio deles... cair nas graças de alguém! Mas será que não têm talento? Dentre tantos, como você diz, eles não se sobressaem? Será que são grafiteiros? Não estarão num outro patamar ou num outro território, como você prefere?

Macsp (rindo): Quem faz grafite é grafiteiro, não? Quem faz gravura é gravador. Quem faz escultura é escultor...

Eu: Parece haver certa lógica em sua provocação, mas outro dia vamos discutir substantivos e predicativos! Não é implicância sua com certa linguagem, a de rua, a street art? Outros artistas tão admirados por você levaram aos museus, às galerias, linguagens da rua, do design, da propaganda, do cinema, e, em outras instâncias, da igreja, da natureza... e hoje do universo da cibercultura. Você gosta de Andy Warhol, de Keith Haring, de Basquiat...

Macsp: Hum... não vamos confundir street art com artistas de rua, hein... Os cruzamentos das grandes cidades estão cheios de artistas de rua... Esse é um ponto. O outro... Warhol pode ter sido oportunista, assim como Lichtenstein, ou, como meu predileto, Patrick Caulfield, mas não foi literal. O problema d'OSGEMEOS é a literalidade ou ainda a falta de profundidade mesmo!

Eu: Mas eles discutem problemas do mundo... Eles expõem problemas do mundo. Não são artistas de rua! Você está sendo injusto de novo!

Macsp: A Ana Maria Braga também discute coisas do mundo!

Eu: Cuidado! Esta senhora ao lado pode gostar dela... Foi idéia sua passear pela cidade com a nova jardineira!

Macsp: Nada contra o arte-sanato, mas alçar os gêmeos ao nível de artistas com discursos realmente relevantes é demais.

Eu: Bobagem sua. O grafite existe desde a Antigüidade. Já era hora de alguém alçar, como você diz, essa linguagem a um novo patamar. Trata-se de um fenômeno mundial. Seja em Beijing, em Barcelona ou Nova Iorque, haverá grafiteiros, artistas de rua...

Macsp: Correção: Beijing é Pequim, meu caro... e voltando ao grafite como questão cultural, você não pode comparar os grafites de Pompéia, feitos em banheiros ou em casas de prostituição, com os grafites atuais. Há grafites e grafites. Os grafites de Pompéia talvez tivessem apenas um caráter jocoso e não o caráter pseudo-contestatório, às vezes sem sentido, dos grafites atuais...

Eu: Ok, mas o grafite atual não é uma manifestação cultural importante?

Macsp: Quando destroem o patrimônio público, por exemplo, ou quando dizem coisas nonsense como "carne é crime" ou como fizeram na atual bienal de São Paulo: "abaixo a ditadura", separando o "a" do "baixo"... são, sim, manifestação cultural ou política, mas num sentido bem pequeno de uma coisa ou outra.

Eu: Mas em São Paulo não importavam os dizeres e sim a manifestação! E não há manifestações maiores ou menores, péra lá! Onde foram parar nossas aulas de Sociologia?

Macsp: Eu até concordo com sua divisão clássica entre pichadores e grafiteiros, mas que sentido tem uma frase sem sentido, num muro? É como o próprio grafite dos museus e das galerias. Eu exponho um artista grafiteiro e coloco um cartaz dizendo: isso não é um grafite... Em Magrite ou Foucault isso fica engraçado, faz sentido; no museu, não!

Eu: Acho que sua implicância é com a fealdade do grafite! É com a distorção que ele faz da imagem, com o quê de obscenidade que ele tem. Isso desestabiliza você. Você, na verdade, é um conservador.

Macsp: Não é! É com sua beleza, com seu excesso, com sua repetição, com sua mesmice.

Eu: Como assim. Que beleza... e de que excesso você fala?

Macsp: Nem todo grafite é feio. Ao contrário, a graça hoje está em fazer grafites cada vez mais elaborados, neo-barrocos, pós qualquer coisa. De fato, em todo o mundo civilizado existe a manifestação cultural do grafite como rebelião e como produto de consumo, mas ele deixou o submundo, veio à luz, emprestou dos HQs, dos mangás, dos jogos eletrônicos, da internet, etc, formas, figuras, cores, etc., e se perdeu. Qualquer um faz grafite; basta um pouco de habilidade. É como fazer bijuterias. Basta comprar as pecinhas numa loja e ter um bom par de alicates!

Eu: Que exagero. Hoje, o grafite se transformou numa linguagem poderosa. Você pode acessar a internet e imprimir um trabalho de alguém do outro lado do mundo e colocá-lo em sua cidade!

Macsp: Talvez não um grafite em si, mas um subproduto dele, com variações de nomes e de usos: interferências, colagens, pinturas, etc. Eu concordo que essa unificação pela internet seja um aspecto interessante do mundo atual, principalmente se pensamos em países que ainda sofrem com governos totalitários, mas a unificação, que à primeira vista parece tão interessante, justamente por ser uma unificação, perde o sentido buscado pela Arte, que é a diferença!

Eu: Mas não há uma Arte! Há diversidade dentro da Arte!

Macsp: Olha, para não alongar a conversa, convidar um grafiteiro para grafitar um muro é institucionalizá-lo, é transformar o que havia de contestatório em discurso corrente, é neutralizar seu poder de perturbação, é desmotivar sua irreverência, domar sua rebeldia, rir de sua coragem, ironizar o pouco de irresponsabilidade que ele emprestou da grande arte, aquela do louco, que você tanto admira em Foucault.

Eu: Ok, então está certo. Após visitar o Tingüi, vou levá-lo à casa de um colecionador de Sérgio Ferro.

Macsp: Passo essa. Quero voltar ao MON ver a Katologue XXL!

Eu: Eu gosto d’OSGEMEOS...

Macsp: Todo mundo gosta.

Benedito Costa Neto é professor do Unicuritiba, crítico e colecionador.

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