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No período da história da humanidade conhecido como Renascimento, o que movia os homens – em especial homens de gênio, de um lado, e homens de ação, de outro (e melhor ainda quando coincidiam ambos num só indivíduo) – era a investigação, a descoberta. Basta dizer que todo um novo continente, Brasil incluído, acabava de se revelar aos olhos do mundo. Evoluíam as artes, a ciência. Multiplicava-se o comércio. E foi aí que um daqueles homens de gênio – ação, no seu caso, só e suficientemente a do intelecto – resolveu que o mais importante a investigar e descobrir era... ele mesmo. Não ele, Michel de Montaigne, literalmente – mas a condição de seus iguais. A condição humana.

Montaigne é o autor d’Os Ensaios, três volumes de reflexões que, a partir do título, viriam a batizar um gênero de escrita então nascente. "‘Ensaio’, no francês da época de Montaigne, era muitas coisas: o exercício que os alunos faziam na escola, o protótipo que os artesãos faziam antes da obra definitiva, o teste que se fazia nas casas da moeda para avaliar o teor do ouro e da prata", esclarece Rosa Freire D’Aguiar, responsável por uma nova e excelente tradução, direta do francês, de uma seleta desses textos que inauguram o gênero ensaístico (leia entrevista à pág. 3). A reedição de Montaigne no Brasil, aliada ao súbito interesse do leitor brasileiro pelos ensaios que, por exemplo, as revistas serrote e Dicta & Contradicta vêm publicando há dois ou três anos com regularidade e entusiasmo, chama a atenção para esse gênero híbrido: literário, científico, jornalístico, memorialístico.

Existe quem defenda o ensaio como gênero "narrativo", ou seja, eminentemente literário, mas ao longo do tempo, avalia Leandro Konder, um estudioso da matéria, também foi sendo reforçada sua "natureza científica". Konder chega a dizer que Montaigne, com seus Ensaios, desbancou o tratado – até ali a forma de exposição por excelência da investigação e da descoberta. E "o ensaio", observa Rosa D’Aguiar, "comportava a noção de tentativa, portanto, a de erro. E essas duas noções não eram (são) justamente as que guiavam as experiências científicas?"

O professor Luís Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), intervém no debate para retomar as definições mais corriqueiras da palavra ensaio à época de Montaigne: ao "ensaiar", o sujeito "lida com dois níveis de coisas, com dois lados: numa mão, a realidade desconhecida – o pedaço de metal, o suposto ouro, ou o fato novo, o fato desconhecido, o desafio à inteligência; na outra, um paradigma, a realidade conhecida". Fischer conclui essa passagem da ótima genealogia do tema que realiza no livro Inteligência com Dor numa espécie de aforismo: "Quem ensaia testa o que está numa mão em relação com o que está na outra".

Pode-se até chamar isso de ciência. "Mas, com Montaigne, de fato a coisa mudou", lembra o mesmo Fischer. "Para dar vazão a seu ímpeto, a seu modo de pensar, ele precisou enfrentar o limite conhecido, forjando um texto híbrido de reflexão moral, divagação, conselhos, exibicionismo, erudição clássica e algo mais."

Para inglês ver

O curioso é que, depois do francês Montaigne, autor da segunda metade do século 16, o ensaio passou a ser coisa para inglês ver – ou melhor, para inglês escrever. Conforme observam vários estudiosos do tema, o gênero atravessou o Canal da Mancha para só retornar a Paris já em pleno século 18, pelas mãos de Voltaire.

Enquanto isso, nas ilhas britânicas, sucederam-se gerações de ensaístas clássicos, na catalogação do professor Fischer: Francis Bacon, ainda contemporâneo de Montaigne, como pioneiro; uma primeira geração inaugurada por Abraham Cowley e consolidada por Dryden, Pepis e Locke; a segunda, capitaneada por Richard Steele e Joseph Addison, num momento em que também começam a aparecer as revistas dedicadas ao ensaio, como The Spectator; então a estrela solitária Samuel Johnson; e, por fim, o século 19, do qual Coleridge seria o expoente – mas vale mencionar também o caçula dessa geração, John Stuart Mills. Sem falar de seus contemporâneos do outro lado do Atlântico: os americanos Emerson, Poe, Thoreau e Lowell.

Um dos cultores do gênero na Grã-Bretanha foi o filósofo escocês David Hume, um francófilo confesso, mesmo que isso possa surpreender a muitos. Ocorre que, segundo argumenta Hume em seu A Arte de Escrever Ensaio, recém-publicado no Brasil (leia quadro com mais dicas de leitura à pág.3), os "estilos nacionais" de franceses e ingleses favoreceriam mais os primeiros do que os segundos na tal arte ensaística. E isso porque os franceses praticavam como ninguém uma outra habilidade, anterior à da escrita: o que Hume chama de "galanteio" e "conversação".

É no ensaio, entusiasma-se o filósofo, "que os homens de letras de nossa época têm perdido, em grande medida, o temperamento tímido e acanhado que os mantinha distantes dos homens do mundo", o que beneficiaria igualmente a estes, por sua vez orgulhosos de buscar nos livros assunto para suas conversas. "Espera-se que essa liga do mundo letrado com o mundo do convívio social, que começou tão bem, possa se aprimorar ainda mais (...). Não sei de nada tão vantajoso para esse fim quanto ensaios como estes, com que me proponho a entreter o público", argumenta Hume, em causa própria, como se vê. Mas os franceses, notórios galanteadores bons de papo, naturalmente levavam vantagem.

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