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Pensamento genuinamente tupiniquim

Raimundo de Farias Brito (1862, São Benedito, Ceará – 1917, Rio de Janeiro) é um caso peculiar de reconhecimento da filosofia brasileira. Na semana de 5 a 10 de novembro de 1962, realizou-se o 4º Congresso Nacional de Filosofia promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia na Universidade do Ceará, atual UFC, em homenagem ao centenário do ilustre cearense. Prestigiada pela presença do reitor e do governador do Estado, a homenagem acadêmica, que resultou na apresentação de 14 textos sobre o pensamento de Farias Brito, estaria hoje no limbo se nela não tivesse participado o norte-americano Fred Gillette Sturm.

Diferentemente dos demais, que apresentaram estudos de caráter genérico – O Direito em Farias Brito, A Filosofia da História em Farias Brito, etc. —, ele surpreendeu ao falar sobre motivos existencialistas no pensamento de Farias Brito, além de assinalar similaridades entre a metodologia do brasileiro e a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938). O que faz desse estudo uma novidade? O fato de que, pela primeira vez, alguém soube distinguir no brasileiro, além do vigor e da profundidade de pensamento, uma originalidade até então insuspeita.

Quatro décadas antes, o quadro fora bem diferente. Pouco estudado em vida, Farias Brito ficou marcado pelo interesse apaixonado que o teor metafísico do seu pensamento despertara junto ao movimento de renovação católica nacional, então liderado por Jackson de Figueiredo (1891-1928). Ele chegou a ser saudado como "o intérprete de nossas ânsias de infinito". Tal cooptação é o que melhor explica a imagem conservadora que dele fizeram, numa época em que a intelectualidade brasileira se empenhava no trabalho de modernização das instituições de cultura do país. Eis que o legado de Farias Brito acabou sendo classificado pela historiografia filosófica brasileira como o de um metafísico à moda antiga, que teria vivido fechado num mundo de abstrações, brigado com a vida.

Indiferente às suscetibilidades do contexto cultural brasileiro, Fred Gillete Sturm, recém-doutorado em Filosofia pela Universidade de Columbia, e ainda sob o impacto que o existencialismo e a fenomenologia provenientes da Europa causaram sobre a psicologia e a filosofia norte-americanas, soube situar Farias Brito com isenção no âmbito da filosofia ocidental, concedendo-lhe posição de vanguarda, e promoveu, em consequência dessa isenção, uma completa inversão da idéia de filosofia brasileira.

O nome de Farias Brito começou a aparecer numa época de perquirições histórico-culturais. O Mundo Interior (1914), seu livro mais famoso, cujo subtítulo é Ensaio sobre os Dados Gerais da Filosofia do Espírito, ainda é um texto a descobrir em meio a uma safra de livros que representam, historicamente falando, a consciência crítica da formação cultural brasileira, a qual inclui, sem prejuízo de outras obras, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha; Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda; A Cultura Brasileira (1943), de Fernando de Azevedo. Referimo-nos à época do Modernismo (1922-1945) que, enquanto revolução estética e psicológica, remonta ao cientificismo de inspiração positivista, o qual não só se opusera ao romantismo religioso e decadente como ajudara a solapar as bases da monarquia e do regime escravista. A exigência histórica de profundas transformações culturais nos impôs, sem dúvida, um sentido de realidade que conspira contra qualquer projeto de investigação metafísica, por mais fundamentado que seja.

Farias Brito iniciou sua pesquisa filosófica pelo exame das teses de Tobias Barreto (1839-1889), que fora seu professor na Escola de Direito do Recife. Aprofundando os estudos do então famoso mestre, ele foi levado a defender a necessidade de uma "ciência" do espírito que não se confundisse com a psicologia experimental da segunda metade do século 19. Ele buscava um tipo de saber capaz não só de atender à aspiração humana de organizar a vida em bases racionais, como também de dar uma resposta ao problema da dor inerente à finitude da vida.

Farias Brito é de uma estirpe de filósofos cuja preocupação se constitui no problema mesmo da filosofia: o conhecimento de si como espírito ou consciência. O que se quer dizer com isto? Primeiramente, que a unidade e a identidade de sua obra filosófica giram em torno à necessidade desse conhecimento. Esta é uma evidência desde A Filosofia como Atividade Permanente do Espírito (1895), no qual ele faz uma declaração explícita de intenções: "quero, numa palavra, interrogar os segredos da consciência de modo a explicar a cada um a necessidade em que está de compreender o papel que representa no mundo [...]. Quero estudar esta ciência incomparável de que falava Sócrates".

Tal orientação se renovará sempre. Eis como ele conclui seu último livro, O Mundo Interior: "de toda a forma, a verdade fundamental, a verdade que é o centro de todo o trabalho do espírito e o princípio mesmo do método, é ainda e será talvez sempre, a que se encerra no velho preceito socrático: Conhece-te a ti mesmo". Eis ainda como ele se apresenta no terceiro parágrafo do Ensaio sobre o Conhecimento, apenas iniciado: "E comecei interrogando e é interrogando que termino [...]. Que é tudo isto que me cerca? Que sou eu mesmo que trabalho por conhecer a verdade?". Tal instância do conhecimento de si, entretanto, não é exclusividade de seu pensamento, senão da própria filosofia. E este segundo ponto a ressaltar revela a magnitude de Farias Brito como filósofo. Somente pela instância do conhecimento de si se pode conceber a filosofia em sua historicidade, desde o momento socrático ao cogito cartesiano, passando por Agostinho, que distinguiu o ato de pensar como atributo exclusivo do espírito, contrariamente ao corpo, e por isso mesmo como função inerente ou inata ao espírito.

É assim, pelo sentido da filosofia como uma disciplina cujo objeto é em cada um a consideração do espírito em separado do próprio corpo, como princípio de conhecimento e de ação moral, que se deve situar Farias Brito tanto no âmbito da história da filosofia ocidental quanto em relação ao nascimento da filosofia no Brasil. Sua apresentação como filósofo brasileiro e em face da possibilidade mesma de uma filosofia brasileira pressupõe, sem dúvida, uma trajetória desse sentido da filosofia no Brasil.

Luiz Alberto Cerqueira, Coordenador do Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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