Nessa Serra, vemos os picos do condor Castro Alves, do ciencial dos Anjos, do sábio Bandeira, do multiface Drummond, do vital Vinicius, do cerebral Cabral e, sim, do zenial Leminski, menos para quem olha do chão neblinoso da inveja e da incompreensão, uma cevando a outra e cegando a visão de Paulo (Lelé, como o chamava nossa amiga Elisabel Jordão) como gênio da poesia brasileira.
Há quem se confunda, na avaliação artística de Lelé, com a lenda, que ele cultivou, de autoimolação beat por álcool e drogas. Mas olhando sua obra sem ramelas biográficas, vemos que não se conformou com a poesia convencional esgotada, nem se rendeu à esterilidade do concretismo, do vanguardismo ou do compliquismo. Levado por espírito investigativo e prazeralidade (necessidade e prazer de comunicar), procurou o sincretismo sinérgico entre o velho zen oriental e a nova visão pop ocidental, convergindo para a poesia informações semióticas, musicais, visuais, plurais.
Não foi, porém, um ruptor, foi um inovador, reciclando com originalidade formas convencionais. Por exemplo na emblemática quadra "não discuto / com o destino / o que pintar / eu assino", a graça (no melhor sentido) está no último verso caligrafado. E, embora seja uma quadra, não é a velha quadra, de ritmo cadenciado (que, com os trovadoristas, chegou a tornar-se fôrma repetitiva e previsível). A métrica dos versos em 3, 4, 4 e 3 sílabas confere um ritmo jazzístico, um balanço, dando suporte ágil à ideia zen de acolhimento do imprevisível.
Outra quadra é exemplo dessa fusão entre forma convencional com truque inovador e sacada instigante: "CURVA PSICODÉLICA/ o trem salta fora dos trilhos/ EDUCAÇÃO ARISTOTÉLICA/ não legarei a meus filhos". Os versos em maiúsculas similam vagões, os versos em minúscula similam os trilhos e o ritmo quebrado (conforme a métrica convencional) simila o descarrilhamento, para apontar uma revisão educacional que ainda se faz necessária para o os pais e o país.
Em três versinhos de rima trina, eclode uma profusão de especulações bioéticas: "Confira/ tudo que respira/ conspira".
Mesmo num poema-piada como "entro e saio/ dentro/ é só ensaio" pode-se ver, além da graça, a sacada reflexiva: a similitude entre os versos simila também o espelhamento entre ensaio e espetáculo, ilusão e realidade, sonhar e ser etc. A leitura de Leminski convida e não prescinde da inteligência e imaginação do leitor, e talvez também por isso alguns o desvalorizem...
Mas Lelé tem, como todos, altos e baixos, estes mais na prosa. Seu cultuado Catatau é um conto pretensioso delirantemente expandido, aleijão que, porém, faz a delícia dos cultuadores. O romance Agora É Que São Elas também começa ótimo e também se perde (ou, para os cultuadores, se alça) no delírio linguístico. Mas vários de seus ensaios e biografias são exemplos de singularidade e instigânsia (ânsia de instigar, eixo motivador de toda sua obra).
É na poesia que Lelé conquista corações em massa, indo além do círculo de cultuadores semióticos. Traz, para as galerias empoeiradas da poesia, frescor de idéias e inquietude de posturas e formas, inclusive libertando o haicai da fôrma tradicional. Eticamente, tem uma lisura e uma saudável visão de mundo que não se encontram, por exemplo, no monstro (conforme Manuel Bandeira) Machado de Assis, tão cultuado pelos mesmos que não conseguem valorizar Lelé.
A esses, ele como que respondeu antecipada e eternamente, com o poema "apagar-me/ diluir-me/ desmanchar-me/ até que depois/ de mim/ de nós/ de tudo/ não reste mais/ que o charme". Irônico é que mais e mais gente conhece seus "restos", as lembranças de sua obra que se incorporam ao nosso patrimõnio poético usual, como "eles passarão, eu passarinho" de Quintana.
Seus altos e baixos fazem rugir a necessidade de uma boa antologia, talvez dificultada pela sua displizência (eu o vi assinar contrato sem ler, dizendo "seja o que Zen quiser"). Então talvez os que ainda menosprezam sua obra compreenderão sua despojada riqueza e instigante beleza. Até porque "pra que cara feia?/ Na vida/ ninguém paga meia..."
* Domingos Pellegrini é escritor e colunista da Gazeta do Povo. Vencedor de seis prêmios Jabuti, é autor de O Homem Vermelho e O Caso da Chácara Chão.
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