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Causa surpresa flagrar estudiosos das obras de William Shakespeare (1564 – 1616) gostando de adaptações para o cinema que situam Hamlet na Nova Iorque do século 20 – como a versão protagonizada por Ethan Hawke em 2000 – ou levam Romeu e Julieta para a praia de Verona, na Califórnia, como fez Baz Luhrmann em 1996.

O que esses dois filmes têm em comum, além de atualizar os cenários de peças escritas há mais de 400 anos, é serem fiéis à forma com que o texto foi concebido. O estudo mais importante a tratar dessa qualidade literária acaba de ser publicado no Brasil: A Linguagem de Shakespeare, de Frank Kermode (Tradução de Barbara Heliodora. Record, 464 págs., R$ 54,90).

Tão significativa quanto à linguagem, são as imagens criadas pelo dramaturgo. Exemplo de imagem é quando Romeu descreve seu amor por Julieta como "fumaça formada pelos vapores dos suspiros;/ Purificado, é um fogo brilhando nos olhos dos amantes". Esse é um dos momentos destrinchados por Caroline Spurgeon (1869 – 1942) em estudo seminal de 1935 lançado só agora no Brasil, A Imagística de Shakespeare (Tradução de Barbara Heliodora. Martins Fontes, 416 págs., R$ 49,50).

À primeira vista, dois títulos significativos podem caracterizar um interesse súbito do mercado nacional por pesquisadores que se dedicaram ao bardo. Na verdade, o interesse parece ser por uma pesquisadora. Considerada a grande dama da crítica teatral brasileira, Barbara Heliodora é a maior estudiosa de Shakespeare no país. Tradutora talentosa e dedicada, prepara a edição das obras completas do autor de Rei Lear, a ser publicada pela Nova Aguilar ainda este ano (ao menos essa é a previsão).

Doutorando em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) – o tema de sua tese é alegoria e tragédia em Hamlet –, Lúcio Esper diz que esse não seria um "interesse súbito" por Shakespeare, mas um "interesse tardio", sobretudo por Caroline Spurgeon ter produzido seu livro há mais de 70 anos. Ele observa uma dinâmica editorial que, todo ano, leva a dois ou três bons lançamentos sobre o teatro shakespeareano. "Nos anos anteriores, foram os livros de Harold Bloom traduzidos por José Roberto O’Shea", lembra, atribuindo o mérito dessa onda de lançamentos ao trabalho "generoso" de Barbara Heliodora.

Frank Kermode assume ter escrito seu estudo para um público "não-profissional", mas diante de tantos títulos – estima-se que 5 mil novas publicações sobre Shakespeare saem a cada ano em língua inglesa –, interessados podem estacar, sem saber que rumo tomar. "A compreensão e a clareza com que ele (Kermode) analisa o uso da linguagem por Shakespeare, inclusive sua evolução ou amadurecimento estilístico, é exemplar. Spurgeon é uma fonte de informações preciosa, pois seu estudo sobre o uso que Shakespeare faz das imagens, a identificação das imagens dominantes em cada peça, foram contribuições definitivas para a melhor compreensão do processo criativo do dramaturgo. Toda peça relida depois da leitura de um ou outro (ou ambos) será mais rica", afirma Barbara, em entrevista concedida por e-mail.

A professora Liana Leão, da UFPR, explica que Kermode é importante pela trajetória que faz "de um Shakespeare que, no início da carreira, está preocupado com rimas, símiles e comparações e que, maduro, prefere a densidade das metáforas, a concisão, a ambigüidade, as antíteses, os oxímoros e os paradoxos". Sobre Caroline Spurgeon, ela destaca os quadros comparativos ao final do livro, que organiza as imagens usadas pelo autor, dividindo-as em temas e subtemas (vida cotidiana, guerra, dinheiro, etc.).

Para a octogenária Barbara, que dedicou a vida ao teatro – e boa parte dela a Shakespeare –, ler e entender o dramaturgo inglês hoje vale a pena "porque ele é um autor que tem muito a nos dizer sobre o ser humano, que é perfeitamente semelhante ao que ele era no tempo em que as peças foram escritas. Esta ou aquela convenção social poderá não ser mais a mesma, porém será sempre possível compreendê-las e até mesmo identificar as suas correspondentes de hoje em dia". Deus pode ter criado o homem, mas Shakespeare, como sugeriu o crítico Harold Bloom, inventou o humano.

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