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Ao exemplificar do que trata aquele que, para um número crescente de especialistas em literatura, é o campo da nova pesquisa acadêmica na área que mais os empolga, Lisa Zunshine, professora de inglês da Universidade de Kentucky, cita um episódio da série de tevê Friends.

(Preste bastante atenção agora; o assunto aqui é a ciência da língua.) Phoebe e Rachel planejam uma pegadinha para Monica e Chandler quando descobrem que os dois estão namorando em segredo. O casal descobre antes a armação e tentar virar o jogo, mas Phoebe percebe a reviravolta e, mais uma vez, tenta surpreender os dois.

Como diz Phoebe a Rachel: "Eles não sabem que a gente sabe que eles sabem que a gente sabe".

Esse processo em camadas em que se descobre o que outra pessoa está pensando – ou seja, de leitura da mente – é ao mesmo tempo um artifício literário comum e uma ferramenta de sobrevivência essencial. Porque nós, os seres humanos, somos equipados com essa capacidade e que funções particulares do cérebro nos permitem tê-la são questões das quais se ocupam, primordialmente, os psicólogos cognitivos.

Agora, professores de Inglês e estudantes de graduação da área também estão se colocando as mesmas perguntas. Eles estão convencidos de que a ciência não apenas proporciona insights inesperados na leitura de textos, individualmente, mas pode ajudar a responder questões fundamentais sobre a própria existência da literatura: por que lemos ficção? Por que nos envolvemos de maneira tão passional com personagens que não existem? Que processos mentais subjacentes são ativados quando lemos?

Zunshine, cuja especialidade é a literatura britânica do século 18, entrou em contato com o trabalho dos psicólogos evolucionistas quando era estudante de graduação na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, nos anos 90. "Pensei que aquilo talvez fosse a coisa mais interessante que eu jamais aprenderia", diz ela.

Numa época em que os departamentos de Literatura das universidades enfrentam dolorosos cortes em seus orçamentos, um mercado de trabalho moribundo para os formandos e um acirrado questionamento sobre o propósito e o valor de uma formação em humanidades, o fecundo cruzamento entre literatura e psicologia tem se mostrado um sopro revitalizante.

Jonathan Gottschall, que tem escrito extensamente sobre o uso da teoria evolucionista para explicar textos de ficção, afirma que "este é um novo momento de esperança" numa era em que só se fala na "morte das humanidades". Para Gottschall, uma abordagem científica pode resgatar os departamentos de literatura do incômodo que neles se instalou neles na última década e meia. O ardoroso entusiasmo pelas teorias politicamente marcadas e frequentemente incompreensíveis que movimentaram esses departamentos nas décadas de 70, 80 e 90 – marxismo, estruturalismo, psicanálise – já não sobrevive. Desde então, uma nova geração de estudiosos tem se esforçado na busca pela próxima grande novidade.

O cérebro pode ser o que procuram. Ir às raízes da fascinação das pessoas pela ficção e pela fantasia, diz Gottschal, é como "mapear o país das maravilhas".

A literatura – como outros campos, história e ciência política entre eles – tem se voltado à tecnologia que permite obter imagens do funcionamento do cérebro e aos princípios da teoria da evolução à procura de evidência empírica para teorias impossíveis de se provar.

O interesse pelo tema floresceu na última década. Elaine Scarry, professora de Inglês da Universidade de Harvard, desde o ano 2000 promove um seminário sobre a teoria cognitiva e as artes. Ao longo dos anos, os participantes abordaram, por exemplo, o funcionamento do córtex visual para explicar por que pinturas impressionistas parecem tremular para quem as observa. Daqui a algumas semanas, Stephen Kosslyn, psicólogo de Harvard, fará uma palestra sobre imagens mentais e memória, dois recursos que usamos na leitura.

A professora Zunshine conta que, em 1999, ela e aproximadamente outros dez colegas obtiveram aprovação da Modern Language Association [principal entidade nos Estados Unidos a reunir especialistas em língua e literatura] para a formação de um grupo de discussão sobre abordagens cognitivas no estudo de textos literários. No ano passado, o grupo reunia mais de 1.200 membros. Ao contrário de Gottschall, porém, Zunshine vê as abordagens cognitivas mais como complemento do que como substituto de outras teorias.

A professora está especialmente interessada naquilo que os cientistas cognitivos chamam de Teoria da Mente, que envolve a habilidade de uma pessoa para interpretar o estado mental de outra e localizar a origem de uma informação particular de modo a avaliar sua validade.

Os romances de Jane Austen com frequência são construídos a partir de erros de interpretação. Em Emma, a heroína do título deduz que a atenção devotada de Mr. Elton à amiga dela, Harriet, significava um interesse romântico da parte dele, que na verdade pretendia se casar com Emma. A personagem também interpreta mal o comportamento de Frank Churchill e de Mr. Knightly, sem perceber quais eram os verdadeiros objetos de afeição dos dois.

Os seres humanos são capazes de, confortavelmente, perceber três estados mentais por vez, segundo Zunshine. Por exemplo, a proposição "Pedro disse que Paulo acreditava que Maria gostava de chocolate" não é muito difícil de acompanhar. Coloque-se um quarto estado mental, no entanto, e, de repente, tudo fica mais complicado. E experimentos têm mostrado que num quinto nível o entendimento cai em cerca de 60%, relata a professora. Autores modernistas, como Virginia Woolf, são um desafio à parte por levarem os leitores a tentar acompanhar seis estados mentais distintos, ou aquilo que os especialistas chamam de níveis de intencionalidade.

Talvez a facilidade humana com os três níveis esteja relacionada à idéia do triângulo amoroso, sugere a professora Zunshine. Será que ele está a fim de mim ou dela? Seja qual for a razão, argumenta Zunshine, as pessoas acham estimulante a interação de três mentes. "Se eu tivesse propósitos ideológicos", diz ela, "tentaria criar uma narrativa que envolvesse um triângulo de mentes, porque é algo que nos satisfaz particularmente."

Zunshine atua numa equipe de pesquisadores composta por especialistas em literatura e psicólogos cognitivos que fazem uso de imagens do funcionamento do cérebro para investigar os mecanismos de leitura. O projeto, financiado pela Teagle Foundation e sediado no Haskins Laboratory, em New Haven, tem como objetivo melhorar a capacidade de leitura de estudantes universitários.

"Partimos do princípio de que há uma diferença entre o tipo de leitura que se faz lendo Marcel Proust ou Henry James e o que ocorre quando se lê um jornal, e que, cognitivamente, tem-se algo mais na leitura de textos literários complexos", observa Michael Holquist, professor emérito de Literatura Comparada dA Universidade de Yale, líder da pesquisa.

A equipe gastou quase um ano tentando descobrir como testar essa complexidade. Chegaram ao conceito de leitura da mente – ou seja, até que ponto um indivíduo é capaz de acompanhar múltiplas fontes de informação. O estudo-piloto, que Holquist espera se inicie ainda este semestre, envolverá doze pesquisados. "Cada um deles será colocado na máquina" – um aparelho de ressonância magnética – "e receberá um conjunto de textos de complexidade variada, de acordo com a dificuldade de monitoramento da fonte, e veremos o que acontece com o cérebro do pesquisado", explica o professor Holquist.

Do outro lado do país, Blakey Vermeule, professora associada de Inglês em Stanford, está investigando a Teoria da Mente de uma perspectiva diferente. Ela parte do pressuposto de que a evolução deu uma mãozinha ao nosso gosto pela ficção, e daí passa a examinar a técnica narrativa conhecida como "discurso indireto livre", que mistura a voz do personagem à do narrador. O discurso indireto permite aos leitores adentrar duas ou três consciências ao mesmo tempo.

Essa técnica, que se tornou a marca do romance surgido no século 19 com Jane Austen, ganhou impulso porque satisfaz nosso "intenso interesse pelos secretos pensamentos e motivações de outras pessoas", afirma Vermeule.

A via entre essas duas abordagens – a da ciência e a da literatura – pode ter mão dupla. "A ficção proporciona uma nova perspectiva do que acontece na evolução", diz William Flesch, professor de Inglês da Brandeis University.

Para ele, os relatos ficcionais ajudam a explicar como o altruísmo se desenvolveu, apesar de nossos genes egoístas. Os heróis da literatura são aquilo que Flesch chama de "vingadores altruístas", gente que pune delitos mesmo que nada tenha a ganhar pessoalmente com isso. "A fim de nos dar um incentivo para que monitoremos e asseguremos a cooperação, a natureza nos dotou de um agradável senso de indignação" contra os malfeitores, e de deleite quando eles são punidos, argumenta o professor Flesch. Gostamos de ficção porque ela está abarrotada de vingadores altruístas: Ulisses, Dom Quixote, Hamlet, Hercule Poirot. "Não é a evolução que nos dá pistas sobre a ficção", observa Flesch, "mas a ficção que nos ajuda a compreender melhor a evolução."

Tradução de Christian Schwartz.

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