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O linguista Carlos Alberto Faraco, professor e ex-reitor da UFPR | Pedro Serápio/Gazeta do Povo
O linguista Carlos Alberto Faraco, professor e ex-reitor da UFPR| Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo

Para ajudar a refletir sobre essa pergunta, a Gazeta do Povo procurou Carlos Alberto Faraco, professor e ex-reitor da Universidade Federal do Paraná. Coube a Faraco, há alguns anos, a tarefa imensa de traduzir ao português do Brasil aquele que é, talvez, o mais abrangente estudo moderno sobre "questões de linguagem e tradução" – subtítulo do monumental (533 páginas na edição brasileira) Depois de Babel, obra definitiva do crítico literário e pensador George Steiner, professor de instituições como Oxford, Cambridge e Harvard. O livro, publicado pela Editora da UFPR, percorre com extrema erudição o problema da "compreensão como tradução", como sugere o título do capítulo de abertura.

Faraco, linguista e um dos grandes especialistas brasileiros na questão da diversidade das línguas e suas respectivas culturas, analisa a seguir alguns dos pontos-chave quando se fala em tradução cultural. Por exemplo, o mal-entendido de que os diferentes idiomas correspondem, e desde sempre corresponderam, à divisão do globo por países – uma repartição recente, limitada (em vista da imensa quantidade de línguas de fato existentes) e, sobretudo, artificial. Daí tanto Steiner quanto Faraco recorrerem ao mito da Torre de Babel para ressaltar o quanto traduzir é, mais do que atividade linguística, ocupar um lugar entre culturas: "A diversidade lingüística, nesse sentido do mito, foi um ganho para a humanidade", diz o ex-reitor da Federal. "Se o ônus foi a dificuldade para a comunicação, o ganho foi a diversidade cultural."

Língua e identidade

"Se considerarmos o caráter ubíquo da língua, penso que ela é o elemento mais diretamente perceptível de uma determinada identidade. Basta abrir a boca para o outro me perceber como igual. Ou seja, há uma discriminação que poderíamos classificar de positiva (de identificação, portanto). No entanto, é preciso lembrar que nenhuma língua é homogênea e, nesse sentido, ela também funciona como elemento discriminador negativo: o outro fala a mesma língua, mas fala de modo diferente e isso acaba, em muitas situações, como no caso do chamado português popular brasileiro, redundando em exclusão (em não identificação, portanto). O discurso eufórico sobre língua e identidade costuma não perceber este fato."

Língua e nacionalidade

"Não há, salvo talvez a exceção da Islândia, um país inteiramente homogêneo étnica e linguisticamente. Assim, não há como delimitar a identidade nacional pela língua. A ideologia do "um povo – uma língua – uma nação – um estado" foi criação do século 18 no contexto dos estados alemães (essa ideologia expressava o desejo de unificação destes estados num só país); e da Revolução Francesa (que assumiu explicitamente que a diversidade linguística da França devia ser aniquilada). Essa ideologia atravessou o pensamento político do século 19 e 20, motivou guerras e genocídios, encurtou a cidadania de determinados grupos no interior de um país, estimulou a glutofonia (expressão criada por Antônio Houaiss para descrever o silenciamento das línguas frente àquela tornada oficial pelo estado), etc. O saldo da vigência dessa ideologia é, portanto, extremamente negativo. O desafio hoje é construir um senso de identidade nacional que não pressuponha uma impossível homogeneidade, mas que seja capaz de incorporar integralmente a diversidade."

Entender é traduzir

"Vivemos no imaginário da língua comum e acreditamos que o fato de falar a mesma língua é garantia de imediato e completo entendimento mútuo. Temos no Brasil, por exemplo, o discurso celebratório de que somos um milagre linguístico porque, num imenso território, falamos uma só língua e nos entendemos perfeitamente em todos os rincões do país. Escapa a essa explosão ufanista, primeiro, o fato de que somos um país multilíngue (a sociedade brasileira fala mais de 200 línguas); e, segundo, as inúmeras situações de mal-entendidos que atravessam nosso cotidiano. Embora em tese falemos a mesma língua, não necessariamente nos entendemos. Basta observar as interlocuções de professores e alunos, médicos e pacientes, jovens e adultos, pessoas do meio urbano e pessoas do meio rural e assim por diante. A profa. Stella Bortoni, da UnB (Universidade de Brasília), fez uma pesquisa de recepção do Jornal Nacional (Rede Globo) no entorno de Brasília e constatou que, de novo, não havia entendimento do que os locutores diziam. Falar a mesma língua é apenas ter um chão que facilita negociar sentidos. Todo entendimento é, por isso, necessariamente tradução."

Valores universais

"Acho que só os ideólogos do direito natural acreditavam na existência a priori de valores universais que nos seriam dados por partilharmos a mesma biologia. No entanto, o que se observa é que os valores são criados historicamente nos contextos culturais; são, portanto, enraizados no particular. Ainda assim, a humanidade caminhou (pelo menos em alguns contextos culturais) para a ideia de que há valores que poderiam ou deveriam ser universais. Não uma tábua a priori dada pela natureza ou revelada por uma divindade, mas valores universais a posteriori, construídos a duras penas e na dinâmica da história. Neste caso, trata-se, então, de formular estes valores e difundi-los por convencimento e sem desvios etnocêntricos."

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