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Lançado no Brasil em 2010, Vício Inerente é um retrato mordaz da Califórnia no início dos anos 1970 | Reprodução
Lançado no Brasil em 2010, Vício Inerente é um retrato mordaz da Califórnia no início dos anos 1970| Foto: Reprodução

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Ele domina diálogos como poucos, e tem um senso de humor rapidíssimo, muito afinado e muito afiado, o que gera algumas das melhores cenas faladas que a gente pode ter por aí. Mas acima de tudo o que faz dele um cara incontornável e, portanto, imperdível em 2012 é o fato de que ele tem uma compreensão muito interessante (e especialmente muito abrangente) do mundo contemporâneo, e especialissimamente do mundo americano contemporâneo.

  • Com tradução para o português de Paulo Henriques Britto, Contra o Dia ultrapassa mil páginas
  • Os únicos retratos de Thomas Pynchon foram divulgados pela Marinha e as Forças Armadas. Dentes proeminentes marcavam o rosto do escritor

Eu não traduzi Contra o Dia, o romance mais recente de Thomas Pynchon. Mais ainda, eu já escrevi sobre ele aqui mesmo na Gazeta, lá em 2007.

Depois disso eu traduzi o romance seguinte dele, Vício Inerente, e também escrevi sobre o livro aqui na Gazeta.

Por que é que eu estou escrevendo agora?

Uma, porque Contra o Dia acabou de sair em português, em tradução do grande Paulo Henriques Britto. E no embalo do lançamento acabou vindo à tona a eterna questão do mito da reclusividade de Pynchon. E os tradutores são alguns dos poucos que de fato têm algum contato com ele.

E voltaram as perguntas: é verdade que você se correspondeu com o cara? É verdade.

Outra, porque nessa de falar sobre o livro eu me vi pensando sobre o que faz de Thomas Pynchon um autor, para dizer pouco, fundamental.

Dois motivos.

Mir de bão, né?

Então, a eles.

Um. Sim, o homem tem uma aversão total à exposição. E, sim, os tradutores normalmente têm acesso, muito indireto, muito ziguezáguico, ao homem.

Mas e aí, como é que é?

Pois não é que acaba que essa é uma das maiores discrepâncias entre expectativa e realidade no mundo Pynchon? A aparente disparidade.

A ideia da reclusão, afinal, faz a gente pensar num sujeito fechado, intocável, inabordável. Mas foi tudo, comigo, muito o contrário.

O que me fez repensar essa estória toda, inclusive baseado no caso Dalton Trevisan (engraçado, o maior escritor brasileiro também é um "recluso"...). Porque os dois não cabem no figurino do louco isolado, mal-humorado e hostil. São simplesmente caras que querem levar a vida em paz. Longe da imprensa, longe do barulho. Longe de nós.

Mas, meu, os dois moram em cidades grandes (ok, Curitiba, non troppo). Milhares de pessoas sabem onde eles moram. Eles andam na rua. Levam a vida deles. Eles só não querem ser "celebrity". E, o que eu acho que ainda aponta uma coisa linda da literatura, eles conseguem.

E conseguem basicamente porque existe um grande grau de "respeito". As pes­soas no mundo literário ainda são civilizadas o suficiente pra permitir que eles escolham viver assim.

Aprovado, com louvor, distinção e tapinha na bunda.

Dois. Como é que pode que um cara tão obcecado pelo Papa-Léguas, pela contra-cultura maconheira da Califórnia, por rock-and-roll, fetiches, patos mecânicos tarados, adenoides assassinas e jornadas por sob as areias do deserto seja uma figura central da literatura séria?

Como é que pode eu vir aqui dizer que acho que você bem devia dar uma chance ao calhamaço de mais de mil páginas que te espera na livraria mais próxima?

Bom. Pra começo de conversa, ele é dono provavelmente da prosa mais bonita da língua inglesa, hoje, que fica ainda mais linda por surgir em meio ao caos e à bizarria dos enredos ou dos diálogos. (E quando tudo isso é aportuguesado pelo melhor tradutor do Brasil, a coisa fica realmente imperdível.)

Quando Tom quer, Pynchon escreve mais bonito que qualquer um nesse mundão velho sem porteira.

Ele domina diálogos como poucos, e tem um senso de humor rapidíssimo, muito afinado e muito afiado, o que gera algumas das melhores cenas faladas que a gente pode ter por aí. Mas acima de tudo o que faz dele um cara incontornável e, portanto, imperdível em 2012 é o fato de que ele tem uma compreensão muito interessante (e especialmente muito abrangente) do mundo contemporâneo, e especialissimamente do mundo americano contemporâneo. E isso sem nada de modismos ou modernices. Ele não precisa falar de Facebook e Instagram pra mostrar que entende a si­tuação do ser humano de um certo estrato cultural e econômico dos dias de hoje.

Mesmo escrevendo sobre o século 18 (como em Mason & Dixon), ou o 19 (como em Contra o Dia), mesmo escrevendo sobre a Mongólia (em Contra o Dia, por exemplo), ele sempre retrata o mundo contemporâneo norte-americano.

E, uai, nós somos todos filhos desse mundo.

A paranoia, as lendas urbanas, o desconforto com o capital, o naufrágio da cultura alternativa (apagada pela aurora dos anos 80 em Vício Inerente), tudo isso tem nele uma expressão acabadíssima e, mais ainda, de um vigor satírico imenso. E eu penso aqui em sátira da mais fina estirpe swiftiana: não do tipo que te conforta ao te fazer rir de um "diferente" fácil, mas do tipo que te incomoda demais por te exibir o ridículo de um mundo a que você pertence.

Ele é o nosso grande satirista. Talvez até por isso seja o nosso grande retratista social.

E, além disso, é um dos nossos grandes líricos. Há momentos dolorosamente tocantes em todos os seus romances, mesmo nos mais "leves" como Vício Inerente e Vineland.

Contra o Dia, por exemplo, guarda a melhor e mais pungente história de pai e filha (e ele sempre tem uma dessas), de todos os tempos.

Tenho dito.

E isso está longe de ser pouco. Muito Longe. Porque a questão é que é bem por isso que existem romances.

Pela abrangência, pela multiplicidade, pela tolerância, pela inclusão, pelo retrato do humano. No que de mais pleno.

O romance é a forma artística mais abastardada, e precisamente por isso talvez a mais poderosa.

E nada há de mais romanesco, hoje em dia, minha querida, meu amigo, meu leitor, minha semelhante, meus irmãos. Nada há de mais bastardo e nada de mais puro que a literatura de Thomas Pynchon.

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