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Qualquer semelhança é mera coincidência?

Explode Coração  (1995), escrita por Glória Perez; cerca de cem crianças desaparecidas foram reencontradas pela família após campanha feita pela novela | Fotos: Divulgação/ Rede Globo
Explode Coração (1995), escrita por Glória Perez; cerca de cem crianças desaparecidas foram reencontradas pela família após campanha feita pela novela (Foto: Fotos: Divulgação/ Rede Globo)
Em Duas Caras, a personagem Branca, interpretada por Suzana Vieira, foi afastada de seu cargo na fictícia Universidade Pessoa de Moraes, da qual também era proprietária, por usar o cartão da empresa em benefício particular |

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Em Duas Caras, a personagem Branca, interpretada por Suzana Vieira, foi afastada de seu cargo na fictícia Universidade Pessoa de Moraes, da qual também era proprietária, por usar o cartão da empresa em benefício particular

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Retratar, na ficção, acontecimentos baseados em fatos reais tem sido uma constante na produção televisual do país. Assuntos do cotidiano entram na telenovela como se ela fosse uma extensão do Jornal Nacional, como no caso do escândalo dos cartões corporativos envolvendo políticos em Brasília. Em Duas Caras, novela escrita por Aguinaldo Silva, a personagem Branca, interpretada por Suzana Vieira, foi afastada de seu cargo na fictícia Universidade Pessoa de Moraes, da qual também era proprietária, por usar o cartão da empresa em benefício particular.

A telenovela, nesse sentido, cumpre uma função pedagógica: afinal, o que são os tais cartões corporativos e por que é errado o uso em benefício próprio? O espectador (de massa), muitas vezes não habituado a se informar através de jornais e revistas que apresentam a notícia um pouco mais contextualizada que a televisão, consegue tirar suas próprias conclusões das encenações da ficção mais do que conseguiria por uma notícia no telejornal que dura poucos segundos no ar.

De certo modo, a sociedade pauta a telenovela. Entretanto, também é inegável que a telenovela pauta a sociedade. Estudos feitos por teóricos da comunicação apontam uma hipótese chamada de agenda-setting que ilustra bem essa questão. Segundo essa hipótese, a mídia, de uma maneira geral, exerce o poder de agendar temas que devam chamar a atenção da sociedade. Ela agenda sobre o que falar – aborto, Síndrome de Down, bulimia, entre outros – mas não necessariamente sobre "como falar". Nesse sentido, o receptor é convidado a refletir sobre determinadas questões pontuais.

Em Explode Coração (1995), escrita por Glória Perez, cerca de cem crianças desaparecidas foram reencontradas pela família após campanha feita pela novela. Enquanto na ficção a personagem Odaísa – interpretada por Isadora Ribeiro – procurava pelo filho desaparecido Gugú – interpretado por Luiz Cláudio Júnior –, mães da vida real divulgavam cartazes com as fotos dos filhos desaparecidos. Essas cenas eram gravadas em locação nas escadarias da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro, uma evidente referência à conhecida Chacina da Candelária, ocorrida em 1992, na qual policiais militares assassinaram crianças de rua.

De outra parte, também é válido observar que os telejornais promovem uma espécie de folhetinização da informação, criando situações melodramáticas para que o púbico se comova ou se identifique com os dramas vividos pelas pessoas que protagonizam as notícias. É um jogo de mão dupla: o telejornal alimenta os folhetins e os folhetins alimentam o telejornal, emprestando-lhe sua característica essencial – o melodrama.

Com efeito, tragédias, catástrofes, assassinatos e dramas humanos de diversas ordens ganham destaque nas pautas dos telejornais e são objeto de interesse do público, acostumado a uma espetacularização do real muito comum desde o século 19, época do lançamento do folhetim na imprensa escrita. Tal espetacularização do real aproxima-se do fait divers, uma espécie de crônica adaptada ao romance-folhetim, na qual os temas tratados eram os mais diversos: iam desde casos reais de pessoas condenadas à guilhotina até escândalos religiosos e conjugais.

Nesse sentido, é impossível não citar o extinto programa Linha Direta, por meio do qual o espectador era convidado a denunciar ou fornecer pistas para que a polícia prendesse e punisse criminosos fugitivos da Justiça. Com forte apelo popular, o programa reconstituía cenas de crimes não-desvendados pelas autoridades e, fornecendo um telefone para denúncia, apelava ao público para que reconhecesse os assassinos.

É interessante notar as manchetes dos casos reconstituídos, dignas de programas policiais e sensacionalistas, como o extinto Aqui Agora, do SBT, e da imprensa popularesca, como o jornal Notícias Populares: "Matou a namorada e foi ao barbeiro", "Bodas de sangue" , "Traição cega". Em Linha Direta , éramos convidados a torcer para que os criminosos fossem punidos e a ordem, restabelecida. Essa é uma clássica forma do melodrama: estampando na tela da tevê rostos de criminosos que devem prestar contas à sociedade, cumpre-se uma função social e política no mundo histórico.

Essa fusão entre a ficção e o factual podia ser até mesmo observada nos créditos finais de Linha Direta, nos quais constava que o referido programa era uma realização da Central Globo de Jornalismo em conjunto com a Central Globo de Produção, uma clara fusão entre o departamento de notícias e o de ficção.

Por outro lado, Jesús Martin-Barbero, filósofo espanhol radicado na Colômbia e um dos mais importantes pesquisadores da atualidade, lembra que as classes populares só tiveram acesso à literatura através do folhetim, primeiro gênero textual a atingir um público de massa – e que é resultado de uma fusão da figura do escritor à do jornalista. Desse modo, é possível observar que a relação entre o factual e o ficcional esteve presente desde a origem, na própria matriz narrativa fundamental da telenovela.

*Alexandre Tadeu dos Santos doutorando da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo e professor da Universidade Positivo.

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