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"Todo mundo mata aquilo que ama." A célebre frase do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde se transforma no refrão de uma canção entoada por Jeanne Moreau em Querelle, derradeiro filme do diretor Rainer Werner Fassbinder, recém-lançado em DVD no Brasil pela Versátil.

O estribilho, cantado em tom de fatalismo melancólico e com um certo conformismo pela estrela francesa de Jules e Jim – Uma Mulher para Dois, resume bem a força que move o protagonista da trama, um marinheiro amoral e destrutivo criado pelo escritor maldito Jean Genet (1910-1986), resgatado da marginalidade por Jean-Paul Sartre. Em Genet e sua obra, o existencialista viu uma força de resistência a tudo que fosse conformista, conservador e hipócrita.

Genet e Fassbinder tinham muito em comum. O cineasta bávaro era homossexual, depressivo e morreu em 1982, vítima de uma overdose suicida. Seu legado para a produção da segunda metade do século 20 é inegável: renovou o cinema alemão ao subverter o melodrama, o chamado filme sobre e para mulheres, e falou, como poucos, de sua pátria. As personagens femininas que levou à tela – sobretudo Maria Braun, Veronika Voss, Petra Von Kant e Lola – respiram, amam e sofrem como a Alemanha do pós-Guerra, uma ferida exposta, purulenta, no seio da humanidade.

A principal fonte de inspiração formal de Fassbinder foi a fabulosa obra do diretor Douglas Sirk, mestre do gênero melodramático e autor de clássicos como Imitação da Vida e Palavras ao Vento. De Sirk, "copiou" o apreço pelas heroínas femininas, o visual sofisticado e, principalmente, o alto teor de crítica social escondido sob o disfarce do dramalhão.

Em Querelle, no entanto, Fassbinder deixa as mulheres de lado para focar em um personagem masculino radical. Devasso, ele não teme a escuridão, a dor e a morte – e mergulha na sordidez com um fervor quase religioso, como se consciente todo o tempo de seu destino trágico. Quem o interpreta é o ator norte-americano Brad Davis, revelado pelo premiado O Expresso da Meia-Noite (de Alan Parker) e morto em 1991, vítima de complicações decorrentes da aids.

Lançado postumamente, Querelle nada tem de naturalista: é altamente estilizado. Rodado inteiramente em estúdios, é propositalmente teatral e rebuscado visualmente, seguindo uma tendência presente em outros filmes da época, como O Fundo do Coração (1982), de Francis Ford Coppola, e A Lua na Sarjeta (1983), de Jean Jacques Beineix. Para apreciar o filme, talvez seja preciso conhecer melhor a obra ou mesmo a biografia de Genet, artista que nunca abdicou da marginalidade e que falava em "assassinato como um ato santificado".

Respeitoso à obra do escritor e dramaturgo, Fassbinder assume a ambigüidade de seu texto, sempre buscando defender as semelhanças entre sentimentos aparentemente opostos como amor e morte; humilhação e ternura; dor e prazer; e desejo e desprezo. O resultado desse encontro entre dois autores tão provocadores e viscerais é uma experiência cinematográfica da qual não se sai ileso. GGGG

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