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Em seu novo trabalho, "O Céu de Suely", o diretor Karim Ainouz (o mesmo de "Madame Satã") deu vida a uma personagem parecida com Macabéa (criação de Clarice Lispector em "A Hora da Estrela"), mergulhada em seu mundo cretino, recheado de insatisfações e angústias. As semelhanças entre elas não param por aí, cabendo ao expectador decifrá-las em cada cena ao longo do filme, ao mesmo tempo em que se apaixona pela nordestina.

A protagonista Hermila (Hermila Guedes) parece seguir à risca o que disse certa vez Tennessee Williams: "Há um tempo para partir, mesmo quando não há um lugar certo para ir".

E, no entanto, ela só tem em mente que precisa partir. Para onde? Isso é um mero detalhe sem importância. Desde que seus parcos reais a proporcione sair daquele lugar, qualquer outro é o seu destino.

Hermila se esforça para fazer parte daquele mundo: sai para o forró, se diverte, lava carros, canta no videokê, faz inúmeras tentativas. Porém, o único lugar ao qual ela não pertence é Iguatu (CE). Se sente uma ET de mechas coloridas em sua própria terra natal, mesmo que um certo grau de globalização já tenha chegado à cidade, estampada nas barracas com flores de plástico e DVDs piratas à venda.

Ela vive mergulhada em um mundo só dela, um mundo único, sem perspectivas de vida melhor, sem esperanças, e ainda trazendo à tira-colo o pequeno Mateus, fruto da paixão que a impulsiona a atravessar o árido Nordeste, conferindo ao filme um certo ar de road movie.

É quando dá vida a "Suely" e a invenção de "uma noite no paraíso", uma espécie de produto ilícito, desconhecido de seus conterrâneos, mas desejado.

Nesse momento do filme, a jovem se metamorfoseia na Suely, que é a única saída de levá-la para bem longe da vida miserável, daquela paisagem ocre, a qual parece estar condenada. Com isso, afronta a pequena cidade, ao mesmo tempo em que é sucesso entre os compradores do bilhete que os levará ao paraíso de Suely.

A densidade do personagem, o inconformismo com a vida no sertão, parecem temas batidos que se repetem de filme em filme, mas tudo isso cai por terra até vermos a cara que Hermila dá a tudo isso. É essa angústia e garra que tornam tudo tão leve, mesmo em se tratando de dramas tão pesados. Talvez seja o seu rosto arredondado e ainda cheio de vida que faz tudo ser tão novo e cativante.

Um diretor novato, um elenco até então desconhecido do grande público – que conta ainda com João Miguel, Georgina Castro, Maria Menezes, Zezita Matos, Mateus Alves, Gerkson Carlos, Marcélia Cartaxo e Flávia Bauraqui –, uma história bastante original, regada a músicas consideradas bregas, e algumas até minimalistas, e imagens focadas no rosto dos atores: tudo é novo debaixo do vasto e azul céu de Suely. Estes são os ingredientes que fazem o filme ser o que é: simplicidade e uma história para contar.

E o mais curioso de tudo isso são os personagens terem os mesmos nomes que os atores, conferindo uma certa cumplicidade por parte de todos. E isso Karim faz com a mesma ingenuidade que Hermila: inicia o filme gravado em super-8, com uma narração onde conta que o namorado falou: "...ele disse que iria casar comigo, ou então morrer afogado..." E com essa provocação inicial fica bem claro a que o filme se propõe.

Para entender Hermila e por onde passa a sua dor, não é necessário ser nordestino – Karim é de Fortaleza. Hermila é cada um de nós que tem o nó na garganta, a sensação de soco no estômago pelas incertezas e falta de futuro. É preciso apenas deixar do lado de fora do cinema todo o pudor e preconceito e entrar livre, leve e desnudo no mundo de Suely.

"O Céu de Suely" é mais que um filme comum, é um manual de como sobreviver a si mesmo e enfrentar sentimentos tão universais e lembrar sempre que o céu não é só o de Iguatu.

Comparando ainda com Macabéia, a hora de Suely é ainda um pouco melhor, pois, no fundo, ela arranca de dentro de si uma esperança – aliada à criatividade. E então começa a saudade de Iguatu, ao contrário da personagem de "A Hora da Estrela", que não teve tal chance.

Ronan Andrade Diniz é formado em Química e é estudante de Odontologia. Com esta resenha, ele venceu o concurso Gazeta do Povo/Festival de Cinema de Gramado e irá à Serra Gaúcha para participar do júri popular do evento.

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